A sombra projetada de seu próprio reflexo contra a água lhe dava medo. Via-se pálida, com escuras olheiras, a pele seca. Era jovem, mas sentia-se velha, cansada.
Antes do momento final, sentou-se e refletiu. Sentia dentro de si uma forte pulsão de morte.
Estudou tudo isso no curso de psicologia. Mas nem a graduação, nem a pós, nem o mestrado a ajudaram. O que carregava dentro de si era uma mistura de profundo desejo de viver, combinado com uma angústia que a devorava.
Além dos cursos, buscou ajuda médica. E religiosa. E terapêutica. E nada adiantou.
Nada adiantou.
Alternando crises profundas de alegria e tristeza, chegou a pensar em bipolaridade, depressão, dupla personalidade. Ninguém a diagnosticou.
Até que decidiu partir para medidas mais fortes. Injetava drogas na veia, participava de orgias, rituais pagãos, automutilação. Dançava noite adentro movida a ecstasy. Tinha inúmeros parceiros sexuais. Vivia vidrada. Vivia uma vida verdadeira. Cheia de adrenalina.
Partiu para a carreira musical.
Cantava com a alma, emoção, e o sucesso logo apareceu. Sua arte era recebida com identificação, trazia sentido para a vida de outras pessoas.
E então, enfim, encontrou o seu. E começou a melhorar.
Aquilo que os especialistas falavam nunca a curou, mas seus próprios instintos a levaram para o caminho certo.
Sentiu-se alerta, cheia de energia, vital, plena. E queria mais, e mais. E sempre alcançava.
Até que aos 45, a mão gelada novamente a puxou. Tornou-se vazia, sem nenhum motivo externo aparente. A carreira estava no auge, mas a apatia fez a voz parar.
Ficou rouca. E sem emoção. Estava em profunda crise existencial.
Sentada ali, contra seu próprio reflexo semimorto, decidiu chegar logo ao fim.
Iria jogar-se naquelas águas, deixar a correnteza a levar.
Para longe, para o desconhecido.
Salto para o desconhecido.
E começou a chover…
A água deixava sua roupa transparente, tornando possível ver o bico dos seios. Já se sentia nua, então tirou o vestido de vez.
Queria estar em contato com a natureza da forma mais pura.
Sentiu, além da chuva, o vento gelado por sua pele. E então uma estranha sensação a tomou. Era como uma corrente elétrica.
Como a muito tempo nada sentia, admirou-se e olhou para dentro de si, atenta. A eletricidade subia dos pés a cabeça.
Fechou os olhos.
Saltou.
Saltou para o desconhecido.
Um desconhecido frio, veloz, tortuoso.
Perdeu o fôlego. Foi empurrada contra as pedras, arranhou todo o corpo.
Mas de súbito, quando tudo parecia a encaminhar para o final, foi impedida da desistência pela própria força que a havia feito se jogar.
Não era uma pulsão de morte.
Era uma pulsão de vida.
Mas precisava muitas vezes morrer para renascer. Só pelo prazer da aventura. Foi assim quando começou a faculdade de psicologia. E quando tornou-se cantora.
Era esse seu processo interno. Fazia parte de quem ela era, como uma pedra fundamental. Precisava correr riscos, por loucos que parecessem, para enfim ter algo a mostrar para o mundo.
E nossa, como o mundo precisava!
E naquele que parecia ser seu último mergulho, agarrou-se em galhos. Puxou com toda a força que lhe restava. E por incrível que pareça não era pouca.
Conseguiu colocar a cabeça para fora e respirar, bem fundo. Olhou para tudo que a cercava com novos olhos. E lutando contra a correnteza, subiu em uma pedra, de onde saltou em direção a margem, para dar um novo rumo para a sua história.
Para o desconhecido, outra vez. E sempre. Salto para o desconhecido.
E além.
(Virou escritora).
Texto do livro Salto para o Desconhecido. Autora: Carolina Pessôa. Editora Penalux: https://www.editorapenalux.com.br/catalogo-titulo/salto-para-o-desconhecido
Carol, sua história, poética e bem escrita, nos traz emoções e sensações inerentes a quem reescreve a própria vida, escrevendo. Muito obrigada pela reflexão e parabéns.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Recomeçar sempre que for preciso! Parabéns, Carol!
CurtirCurtido por 1 pessoa
Ansiosa para ler o livro inteiro!
CurtirCurtido por 1 pessoa