A menina no terraço

De longe ela apreciava parte de sua pequena cidade. Via os telhados compridos e os muros descascados. As pessoas caminhando, ora apressadas, ora tranquilas. Os carros, ônibus, bicicletas e até mesmo carroças. Lina morava em uma cidade pequena, em que ainda persistia a existência destes veículos.

E o céu azul e um sol escaldante, típico do verão carioca.

Pelo horizonte iluminado, Lina imaginava seu futuro, repleto de realizações, projetos e conquistas. Ela sonhava em ser jornalista, mas às vezes pensava em ser bailarina, ou professora, ou até, quem sabe, uma cientista.

Lina tinha apenas 10 anos, e uma cabeça cheia de planos e sonhos. Ela queria sair daquela cidade pequena e ganhar o mundo, descobrir novas culturas e conhecer novas pessoas. Era novinha, mas já estava cansada daquele pensamento pequeno, de cidade do interior, sem perspectiva. Não conseguia ver a vida apenas como estudar, casar, ter filhos e cuidar da casa.

Lina queria mais, queria desbravar o mundo.

Dali, do alto daquele terraço, ela viajava com a imaginação. A mente a levava para o Rio de Janeiro, capital da cidade em que morava, e onde poderia fazer faculdade e ter uma carreira. Mas também navegava em rios de Minas Gerais, nadava em praias do Nordeste, ou caminhava em trilhas do Centro Oeste brasileiro.

Lina acreditava, em sua pouca idade, que tudo poderia ser possível, bastava querer. Até mesmo virar uma atleta olímpica!

Aquele terraço era seu local de refúgio onde, em segredo, ela podia ser tudo o que quisesse, livre, feliz…

Para subir até lá, Lina passava por uma escada estreita e perigosa, depois de atravessar o varal de roupas, de teto, que sua mãe impecavelmente deixava estendidas quase todos os dias. Esse ritual era feito de forma silenciosa, e nas horas em que ela estava distraída, senão diria: para com isso menina, essa escada é perigosa. Vai cair lá de cima!

Mas para Lina, apesar do perigo, o risco valia a pena.

Aquele terraço não era só um refúgio, era o único lugar em que podia colocar o seu coração.

Lina vivia em uma casa pesada e triste. Marcada pela dor e pelo medo. Vítima de violência doméstica, sua mãe vivia em estado de constante tensão, e não conseguia sair daquilo. Além disso, sua irmã mais nova tinha uma doença grave, e estava acamada, sendo constantemente cuidada. E o pai estava quase sempre fora de casa, o que trazia uma mistura de paz, mas também solidão. No fundo, no fundo, apesar de tudo, ela amava aquele homem, que tanto sofrimento trazia ao lar. Como pode, para uma mesma pessoa, ao mesmo tempo, destinarmos amor e raiva? – ela pensava.

E então, no alto daquele terraço, Lina ia tecendo uma forma de escapar de tudo aquilo, seja por meio do pensamento, seja no caderninho em que ela carregava nas mãos. Lá, escrevia e desenhava cada passo de seu futuro. E era ali, frase a frase, imagem a imagem, que ela, aos poucos, escrevia as futuras páginas de sua vida. Ela não podia saber, mas era aquilo que se tornaria, dez anos depois, seu primeiro livro.

Para fugir da dor, Lina virou…

…escritora!

((Esse texto é de autoria da escritora e jornalista Carolina Pessôa. Mais informações no site http://www.carolinapessoa.com.br e no insta @carolinapessoa25))

RESENHA FILME “ENTRE MULHERES”

*com spoiler

Um celeiro é o cenário onde se desenrola a maior parte do filme “Entre Mulheres”, minha escolha para uma ida ao cinema justo no Dia Internacional da Mulher. Em meio a feno e cavalos e vestidas com roupas antiquadas, mulheres de várias idades de uma comunidade religiosa canadense, isolada e conservadora, debatem, pela primeira vez na vida, acerca de uma decisão que impactará o futuro de todas elas.

Nessa comunidade, as mulheres nunca tiveram voz e vivem subjugadas, do nascimento à morte. Nenhuma delas sabe ler e escrever e muitas não conhecem outro mundo além daquele, apresentado pela cineasta canadense Sarah Polley com sua paleta de cores fria e melancólica.

O único personagem homem que não seguiu os demais em uma conduta execrável é o doce professor August que, gentil e humildemente, se dispõe a registrar por escrito as discussões que levarão à decisão a ser tomada pelas mulheres. E elas fazem isso às pressas, escondidas e na iminência de ver seus algozes retornando e surpreendendo-as em um papel de protagonismo que eles certamente nunca imaginaram que elas poderiam ter. Mas o que eles fizeram é grave demais para mantê-las passivas como sempre foram. Ou nem sempre foram (a cena em que uma das mulheres carrega, escondida, a filha caçula às costas por quilômetros, para ter acesso a um antibiótico mostra que em situações extremas, elas já se insurgiam, ainda que de forma velada).

Não é um filme de enredo surpreendente. Não tem reviravoltas ou mudanças inesperadas de curso. A complexidade do que é contado está no que se processa no íntimo de cada mulher e, principalmente, no que se constrói entre elas de forma coletiva.

Os diálogos são riquíssimos. Há consciência e clareza na argumentação delas, ainda que contraditória, às vezes. Há dúvida e medo. As conversas são fortes, explodem em dor e revolta e em julgamentos para consigo ou para com as outras. Mas há também empatia, delicadeza, união, fé e esperança. E muita, muita coragem!

Chorei copiosamente em uma das cenas finais, quando elas tomam a decisão mais difícil de suas vidas, impulsionadas pelo imenso temor de que tudo se repetisse com suas filhas e pelo receio de que perdessem irremediavelmente a fé. Os meninos, futuros homens, estão com as mães e irmãs, a elas ligados pelo vínculo forte de por elas serem cuidados. Outro temor delas é de que eles também se percam, treinados por uma comunidade dominada por homens adultos que não souberam lidar com o poder que eles próprios colocaram nas mãos.  Para alguns expectadores, talvez haja o julgamento de que uma fuga delas em massa seria covardia. Para outros, que foi o meu caso, a sensação de que deixar tudo o que se conhece é como um salto longo e escuro rumo ao desconhecido, ato para o qual se precisa ter muita coragem.

Pode até parecer, pelo meu choro, que o filme entristeceu meu Dia Internacional da Mulher. Mas não. Encheu-me de emoção, empatia e a certeza de que o que trouxe as mulheres até aqui e o que as move não sucumbe à opressão. A gente sempre vai achar um caminho.

Etta James

É sábado pela manhã e vago sozinha pelo apartamento. Não preciso de roupas, mas não durmo sem elas.

Os cabelos emaranhados e uma xícara quente me acompanham até a sacada e aquecem as mãos.

Alguém ouve Etta James e o som da vitrola me toma. Ela, sonora, deseja um amor de domingo.

Na sexta olhei na cara do desejo e ri dele com escárnio. Do hálito mentolado ao toque áspero da mão. Quer tudo? Vai querendo, eu não dou.

Demoro a me perceber e é noite.

Etta ressoa em mim:

Quem quer um amor de domingo?

Ele me precisa, quer emaranhar meus cabelos de novo, sentir meu suor. O tamanho do seu corpo, precisamente o tamanho do meu.

Segura minha mão com firmeza e conduz a dança, um tango intenso em branco e preto.

Mal amanhece e ele se arvora num café longo, intenso como a sua pele. Quer almoço e sobremesa, quer ficar.

Segura a minha mão com suavidade e me transporta para o infinito das sardas no seu rosto, ou será no meu?

Os lençóis nos inspiram e expiram.

É domingo pela manhã e vago pelo apartamento ocupado. Preciso de roupas e não as uso mais.

Etta vibra dentro de mim:

Eu quero um amor de domingo.

Incompleta e desejante

Somos as estórias que contamos? As fantasias que sonhamos? As experiências reais que nos atravessaram? Ou apenas os restos de tudo isso?

Será possível existirmos, no tempo e no espaço, limitados e limitantes, em todas e em cada uma de nossas múltiplas facetas?  Se incompletos e faltantes pela própria condição humana existencial, talvez muito pouco, entre o tudo e o nada que buscamos ou acreditamos ser, faça alguma diferença, para si e para o outro.

Era para ser um texto sobre amores passados. Aqueles vividos no corpo e na alma, que deixaram marcas, por vezes também saudades. Pois que aos (inúmeros) viventes criados na autocrática e exclusiva esfera da minha mente, pouco a se escrever, pois nada a se recordar no real do corpo e na sutileza da alma – locais onde tudo acontece, ou não. Na mente, encontro, por vezes, os resquícios de devaneios solitários, eficazes cumpridores de uma função simbólica estruturadora. Na alma e no corpo, vida.

Era para ser um texto sobre afetos. Amor, paixão, ternura, apego, afeição, amizade, ódio e indiferença. Dentre tantos outros que igualmente se intercalam, e por vezes se calam, nas sucessivas relações que nos constituem afetiva, erótica e sexualmente. Em meu caso, por enquanto – pois nunca se sabe o que se guarda na caixa de pandora – relações românticas heterossexuais. Na verdade, muitas das vezes pouco românticas, e mais surreais, oportunistas e, porque faz parte da minha natureza, divertidas. Sempre inteligentes, capturaram minha admiração. Os espirituosos, partilharam de minha cumplicidade. Aos parceiros de uma noite, sexo. Os sonhadores ganharam minha curiosidade, sempre. Aos excessivamente ocupados, rendi minha piedade. Aos aventureiros, parceria na terra, na água e no ar. Amizade, a todos, indistintamente. Intimidade? Ahhhh … reserva para a safra especial.      

Era para ser um texto sobre transgressão, pois, em última análise, entregar-se requer muita coragem para ultrapassar algumas fronteiras estabelecidas, inúmeras regras estruturadas e, principalmente, todas as idealizações preconcebidas. Relacionar-se com um “duplo eu” nunca foi a escolha de meu desejo. Agradeço-o por isso. Alargar horizontes, desconstruir certezas e se reconhecer diferente, após cada encontro, para mim, é a maior riqueza que pode existir em uma relação.

Era para ser um texto sobre prazer e desejo. Sobre o que acende e ascende desde o primeiro olhar. Por vezes, segundo, terceiro ou centésimo olhar, pois que o desejo rompe também, estranha e inadvertidamente, com a convivência diária. Do olhar ao toque, à manifesta declaração, às fantasias confessadas (ou não) e ao real e delicioso do corpo – tudo absolutamente conhecido e narrado em prosa e verso, em todas as línguas; mas um singular e instigante idioma a ser descoberto em cada uma das experiências.        

Era para ser, mas não foi.

Era para ser, mas não foram.

Não?!

De fato, sigo. Construindo-me nas estórias que conto; nas fantasias que sonho; nas experiências que me atravessam; e também nos restos de tudo o quê não foi e de todos os quê não foram.

Incompleta e desejante.

Distâncias

Dizem que o amor se faz da ausência, da falta.

A psicanálise chega a afirmar que amamos a falta que sentimos do objeto desejado e, não, o objeto em si.

E faço deste texto uma reflexão conjunta, uma troca de questionamentos. Porque sobre o amor, nunca teremos respostas prontas.

Para mim, a distância é dicotômica: acende e apaga, faz desejar e desconfiar, desperta o desejo e a dor, é suportável e, às vezes, insuportável e com a mesma intensidade que aproxima, pode afastar.

Outra reflexão é: se o amor se constitui na falta, é por isso que os casamentos tradicionais fracassam (em sua grande maioria)? Excesso de presença?

Independente da distância física, perto ou longe, acredito que deve-se manter um espaço para que o outro possa continuar com sua individualidade.

Relações parasitárias enfraquecem os envolvidos, matam a falta um do outro e, consequentemente, adormecem homens e mulheres selvagens, em suas ancestralidades e necessidade de se sentirem “vivos”.

O fato de amar e estar com alguém jamais vai acabar com o desejo e a atração por outros corpos, todavia, precisamos ter plena consciência que nos construímos, dia a dia, pelas escolhas que fazemos.

Precisamos ter nossos “contratos” atualizados, deixar claro o que esperamos, permitimos e negociamos, porque, principalmente quando há distância, vai bater, sim, a insegurança.

E para não tornar o texto tão longo, a ponto de ser um abismo para o seu interesse, as distâncias também se fazem debaixo do mesmo teto. Neste caso, não aquelas que alimentam o amor e atiçam o desejo, mas aquelas que matam qualquer fagulha no coração.

Como em tudo na vida, até para fazer falta, é necessário temperança. Principalmente, quando a serendipidade é a mãe dessa relação.

E posso te confessar uma coisa? Sabe o que ameniza todos os sintomas de saudade? A certeza da reciprocidade, da confiança e da responsabilidade afetiva. Afinal, estar junto, é uma escolha de duas pessoas plenamente conscientes dos seus atos.

Um dia você vai encontrar o que procura

Sabe, hoje em dia, tudo que precisamos saber o significado damos um Google e tcharam, ali está o que estava procurando.


‎         Mas o que realmente procuramos não está escrito em uma página de internet, numa rede social ou no aplicativo de compras dos produtos que vem da China. Às vezes não percebemos que está aqui do lado, a razão ou a consequência de algo que fizemos, pensamos ou passamos e é aí que está o ponto máximo da questão, estamos sempre querendo ser completados e nem sempre conseguimos atingir esse objetivo.


‎         É difícil lidar com o ser humano pois nunca sabemos se estão sendo verdadeiros ou mentindo descaradamente sobre o que está ocorrendo mas é sempre bom ter com você e dar aos outros o “benefício da dúvida”.
‎ O grande dia vai chegar, devagarinho ou como um furacão e caro leitor vai causar uma desordem para no prosseguir da caminhada (a sua vida) tudo se coloque na devida ordem.

Para mais textos, acesse: https://personasdegaia.wordpress.com/

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O Céu e O Inferno (Conto)

Velas acesas, uma música gostosa tocando e uma garrafa de vinho tinto aberta sobre a mesa da sala.

Sentada na janela, Maria olhava a chuva forte que caía lá fora. Uma taça de vinho na mão, lágrimas nos olhos e um sorriso nos lábios. Estava feliz.

Maria teve uma infância conturbada. Não sentia-se amada, não sentia-se segura, pertencente. Escassez, violência e sentimentos invalidados eram lugar comum em sua rotina. Filha de mãe solo, passava maior parte do tempo sozinha enquanto a mãe trabalhava. Sua mãe era dura com ela. Aos 8 anos Maria já tinha a responsabilidade de cuidar da casa e começava a aprender a cozinhar. Dividia-se entre as responsabilidades domésticas, escolares e um desejo incontrolável de ser apenas criança. Sonhava, criava. Enrolava toalhas na cabeça e fantasiava ter longos cabelos enquanto dançava com a vassoura, varrendo a pequena casa. Queria ter irmãos. Imaginava que assim, terminariam as tarefas de casa depressa e, juntos, poderiam brincar.

Não havia muito diálogo entre mãe e filha, mas a mãe de Maria estava sempre preocupada em fazê-la entender o que era pecado, porque este sim, era o maior dos perigos: a levaria ao inferno. Maria não entendia muito bem, mas frequentava as aulas de catequese, ia às intermináveis missas e começou a pensar que andava pecando por achar tudo aquilo uma chatice. Disse isso de cabeça baixa e bastante envergonhada ao padre ao confessar-se. Era o único pecado de que se lembrava.

Com o passar dos anos, Maria ficou “mocinha” e a preocupação de sua mãe aumentou. Maria começou a entender então o que era pecado, o que era céu e inferno. Era pecado tocar a genitália. Se ela sem querer a coçasse na frente de sua mãe, logo vinha a bronca: tá com a mão aí por que? Não sabe que é errado? Tira a mão daí!

Com a chegada do primeiro namorado, aos 15 anos, sua mãe foi bem clara: se você fizer qualquer coisa que seja pecado eu vou saber. Se algum menino tocar em seus peitos eles ficam caídos. Se tocar em outro lugar (e olhava sisuda na direção da vagina de Maria) o andar da moça muda imediatamente, todos ficam sabendo. Se isso acontecer, nunca ninguém vai querer se casar com você. Nenhum homem quer se casar com uma mulher que passou nas mãos de outro. Vai ficar sozinha o resto da vida, sem família e em pecado. Maria tinha medo de que um dia a chamassem de vagabunda como faziam com a filha de Dona Marlene, uma vizinha querida. Coitada da Dona Marlene, sempre tão bondosa, trabalhadora. Mas não deu sorte com a filha que só lhe dá desgosto, é uma piranha – diziam a mãe de Maria e suas amigas quando conversavam.

É que o céu era encontrar um homem, casar-se, ter uma família. Não conseguir isso era o inferno, era não ter futuro, a comprovação de que você não era boa o suficiente, não era merecedora, não era pura.

Maria, então, seguia cheia de medos e dúvidas as orientações de sua mãe. Beijava seu namorado com medo. Pensava o tempo todo nas mãos perigosas dele que, ao menor sinal de distração dela, poderiam levá-la para o inferno, para o pecado. O namoro não durou muito.

Aos 17 Maria sentia sensações estranhas em seu corpo. Já havia as sentido antes, mas agora era diferente, mais forte, mais intenso, quase que incontrolável. Negava, fingia não sentir, lutava contra, não queria aquilo, orava. Conheceu um rapaz. Esse, mais ousado, tentava de tudo, mas Maria segurava – apesar de gostar do que sentia. Gostava mas não podia. Todos saberiam, seus peitos cairiam. Quando se permitia beijos mais quentes, culpava-se. Chorava antes de dormir e pensava: se ele contar a alguém estou desgraçada, não presto, sou uma vagabunda.

Aos 19 conheceu um homem, Felipe era seu nome. Este dizia que a amava. Maria, que nunca sentiu-se amada, amou a sensação de ter alguém amando-a, cuidando dela. Ele se preocupava com ela como nunca ninguém havia se preocupado antes. Ligava o tempo todo para saber onde ela estava e com quem estava, sabia de todos os seus horários, dos horários das aulas da faculdade. Aparecia às vezes sem avisar para fazer-lhe uma surpresa, ligava no fim da aula e ficava com ela ao telefone até que ela chegasse segura em casa, dizia-lhe que sua mãe nunca cuidou dela direito, que ela merecia ter tido mais cuidado e atenção. Nessas horas ela chorava. Ele era mesmo a única pessoa que a amava e preocupava-se com ela. Mostrou a ela que muitas de suas amigas não eram assim, tão amigas. Aconselhou-a a afastar-se delas. Ele sempre quis o melhor para ela.

Cuidava de suas roupas, dizia o quanto era perigoso usar roupas curtas ou decotadas. Mulheres que andam de roupas curtas demais e decotadas demais são umas vagabundas, ele dizia.

Foi ganhando a confiança de Maria. Disse que tudo que sua mãe dissera era mentira. Os peitos não caíam, o andar não mudava. Ele a amava e queria casar-se com ela.

Maria achou que ele era o céu, que ele merecia o que ela tinha de mais valioso. Ele a amava como ninguém nunca a amou. É claro que merecia! Maria então entregou-se a ele. Ao terminarem, Maria entendeu que aquilo era mesmo um presente para o homem amado porque ele estava muito feliz. Já ela, não havia sentido nada de bom. Quando Felipe adormeceu, ela chorou copiosamente por mais de uma hora. Traiu sua mãe, pecou. E se ele não quisesse se casar com ela? Estava desgraçada!

Com o passar do tempo, os peitos não caíram, o andar não mudou, a culpa diminuiu. Maria sentia raiva de sua mãe. Não achava assim tão bom fazer sexo, mas fazia. Felipe gostava. Suas amigas adoravam e sempre falavam sobre como era bom. Ela não entendia o por quê. Achava bom às vezes, mas nada tão incrível assim. Vai ver aquilo não era para ela.

Um tempo depois, a mãe de Maria desconfiada, perguntou a ela: você se perdeu, não foi? Maria empalideceu. Não conseguia responder. Uma lágrima escorreu e então, sua mãe caiu em prantos: você me traiu, traiu a minha confiança. Saiu do quarto em silêncio. Ficou sem falar com a filha por uma semana. Maria sofreu muito. Culpa, dor, rejeição, sensação de não pertencimento. Precisava sair daquele lugar. Aquele não era o seu lugar.

Aos 22 anos Maria casou-se com Felipe. Teve então o tão prometido céu. O problema é que a tal felicidade não chegava. Maria cuidava dele como quem cuida de um filho, fazia-lhe todas as vontades. Não era suficiente. Felipe estava sempre a reclamar, queixar-se da vida. Já Maria, era alegre, divertida, engraçada. Tinha sempre um sorriso no rosto e uma leveza difícil de explicar, carregava a estranha mania de querer ver a vida bonita. Varria suas dores para debaixo do tapete e seguia.

Sem perceber, foi-se entristecendo. Culpava-se por não gostar do céu, mas não podia ir embora. Família é para sempre. Felipe cuidava dela e sempre lembrava-lhe como ela era infeliz quando vivia com a mãe. Dizia que se não fosse por ele, ela viveria uma vida medíocre. Mostrava-lhe como ele era inteligente e dizia-lhe sentir muito por ela ser tão simples, por não ter um mestrado como ele tinha, por não valorizar as coisas requintadas que ele lhe apresentava. Chegou a chamar-lhe de burra algumas vezes. Ele devia ter razão. Maria adoeceu. Depressão. Felipe dizia-lhe palavras de ânimo e motivação para que ela saísse daquele estado. Dizia que ela estava gorda e ficando feia, desinteressante, que não se cuidava. Você precisa levantar dessa cama, tá cheio de gente passando fome lá fora, morrendo de câncer e você aí, deitada de preguiça.

Isso era motivação para que ela voltasse a se cuidar, levantasse daquela cama.

A parte ruim era quando ele queria sexo. Maria não tinha vontade e culpava-se por isso. Como podia não desejar o homem que a amava? Ele não aceitava um não – e com toda razão. Casou-se para isso. Era homem e tinha suas necessidades. Maria aprendeu a abrir as pernas, fechar os olhos e rezar para que ele acabasse logo. Assim ele ficava calmo, não brigava e ainda lhe abraçava e dizia umas coisas bonitas. Apesar desse jeito meio bruto, ele a amava mesmo.

Maria viveu com Felipe por 13 longos anos, até que ele a deixou. Apaixonou-se por outra.

Num primeiro momento, Maria olhou para trás e desesperou-se. Entregou toda sua juventude àquele homem e agora, estava fadada ao desamor e à solidão. Quem ia querer uma mulher separada? Por que o marido não a quis mais? Boa coisa não deve ser! Nem a juventude tem mais para oferecer.

Depois que Felipe saiu de casa, Maria passou alguns dias sem sair da cama. Uma tristeza profunda a abatia. O que havia feito de errado? Qual era o seu problema? Será que estava ainda mais feia? Seriam as celulites em seu corpo de que ele se queixava? Por que não emagreceu? Ela não era boa o suficiente? A nova mulher que Felipe amava era melhor que ela? Certeza que sim! Melhor em tudo! Afundava-se. Não era nada. Acordou certa vez e não sentia nada. Vazio.

Passados alguns dias, Maria levantou-se da cama, tomou um banho, vestiu uma calcinha e uma camiseta, penteou os cabelos molhados e caminhou até a sala. Felipe não estava lá e não voltaria. Ela estava sozinha. Sentiu paz. Colocou uma música alta e dançou. Pulou no sofá, abriu um pote de sorvete, viu um filme. Sentiu um sopro suave de liberdade. Dormiu como há anos não dormia.

Seguiu em frente mesmo ferida, atravessou conflitos e dificuldades, enfrentou-os. Abriu-se para a vida.

Cerca de um ano depois, Maria conheceu um homem. Havia tido alguns encontros antes mas rejeitava qualquer homem que tivesse mera semelhança com Felipe. Não queria mais saber daquilo.

Esse homem era diferente de Felipe. Despertou seu interesse. O primeiro encontro foi bonito. Maria já havia aprendido um bocado sobre si, estava apaixonada por ela mesma, conhecendo-se, descobrindo-se e não deixaria ninguém atravessar isso. Nunca mais. Amava a si mesma pela primeira vez. Gostava de quem era, de quem descobria ser.

Mas é que esse homem era leve, suave. Não queria atravessá-la ou diminuí-la. Parecia ser o oposto disso. Ela desconfiava, não lhe daria muito espaço, mas abriu uma brecha. No espaço dela, ninguém meteria mais o bedelho.

Tiveram sua primeira noite juntos. A lua iluminava o quarto. Se sentiu bonita. Bastaram uns poucos toques e algumas palavras, aquele olhar sobre ela… Maria sentiu seu corpo arder em brasa naquela noite fria, sentiu vibrar em si partes que ela sequer conhecia. Aquele homem queria dar-lhe prazer. Isso era completamente novo. Ela relutou no início mas relaxou em seguida, permitiu-se, aceitou. Deixou a luz entrar por aquela brecha. Fechou os olhos e desligou-se do mundo. Pela primeira vez não estava pensando no que fazer para agradar, no próximo passo para dar prazer. Não estava pensando em nada. Até que algo estranho começou a acontecer. Seu coração acelerou, seu corpo inteiro parecia não ter mais controle, suas pernas tremiam, a coluna envergava, braços expandiam , abdômen contraía, sua respiração parecia uma música fora do compasso e, de repente, como numa explosão, Maria sentia sua alma elevar-se, sair do corpo ao som de um gemido que deixava seu corpo através de seus lábios. Maria jorrou de prazer. Beijou aquele homem com fome, com paixão , sentia o cheiro do prazer, sentia seu sabor nos lábios dele. Gozou pela primeira. Morreu e nasceu de novo ali, naquela cama. Chorou. Chorou muito. De alegria e de tristeza. Tristeza pelo que lhe foi negado, arrancado. Pela vida de gozos perdida. Por ter acreditado durante tanto tempo que aquilo era pecado. Não podia ser! Aquilo era divino! Ela tinha certeza, era divino!

Abraçou aquele homem e agradeceu. Ele a acolheu. Fizeram amor. Olhos nos olhos, peito no peito, cheiros, sabores, desejo. Aconteceu de novo. Sentiu-se poderosa, dona de seu prazer.

Ela precisava ficar sozinha. Foi para casa.

Tomou um banho, vestiu uma calcinha e uma camiseta, penteou os cabelos molhados. Olhou pela janela e viu uma chuva forte cair. Dentro dela também chovia forte. Tempestade. Colocou uma música gostosa, acendeu algumas velas – ela amava luz de velas; abriu uma garrafa de vinho tinto. Serviu-se uma taça. Brindou com o ar, rodopiou ao dançar, sentou-se na janela acompanhada de sua taça de vinho com lágrimas nos olhos e um sorriso nos lábios. Estava feliz, estava livre. Maria estava no céu. E nunca mais ninguém tiraria isso dela.

Memento mori – Lembre-se da morte

 A expressão “Memento mori” perseguiu-me por alguns dias. Eu a vi estampada em uma fachada de Fortaleza enquanto dirigia em modo distraído, em uma rua não-sei-qual em um dia não-lembro-quando. Mas a frase ficou piscando em minha mente e me reaparecia nos momentos mais inusitados ao longo de dias. Ela me soava familiar mas eu não fazia ideia de onde a conhecia e o que significava.

Foi então que me lembrei de um anime japonês que vi com Isabel e que tinha um vilão chamado “Mori”. Quem sabe a expressão da fachada não tinha relação com esse anime? Perguntei à minha especialista em animes e ela confirmou que um dos vilões de Bungo Stray Dogs realmente se chamava Mori. Mas achava que a expressão completa “Memento mori” tinha relação com algo premonitório ou alguma coisa ligada ao sobrenatural. E ela ainda me lançou em tom de reprovação: “- Mãe, o que a senhora andou procurando que se deparou com essa expressão?”. Estava apenas dirigindo por aí… Depois de procrastinar um bocado e a expressão aparecer em minha mente muitas e muitas vezes como um letreiro piscante, parei de arrumar as malas e rendi-me ao Google. Sem rodeios, o oráculo da internet me despejou o resultado para a expressão originada do latim (soube depois) a qual significava secamente “Lembre-se da morte”. 

Meu coração congelou. Procurei, em seguida, por mais respostas para entender o porquê de tê-la visto em uma fachada qualquer de Fortaleza. Será que li mesmo essa frase em alguma fachada? Seria um lembrete divino? Felizmente, achei na internet a menção a uma exposição em Fortaleza com esse tema. Era isso. Passei em frente à bendita exposição e a frase ficou no meu encalço. Isabel diria que eu estava com hiperfoco em Memento Mori, assim como fiquei quando assisti a “Orgulho e Preconceito” pela primeira vez e passei dias consumindo livros, matérias da internet e séries de TV sobre a obra de Jane Austen.  

Bateu-me o receio de que algo pudesse acontecer na viagem de avião que estava prestes a fazer. Mãe que viaja sem os filhos tem preocupação dupla: uma delas é como os filhos ficarão na ausência temporária da mãe; a outra é sobre os riscos da viagem para a vida da própria mãe, quando a ausência temporária poderia virar algo terrivelmente permanente. Dizem que as estatísticas mostram que seria mais seguro viajar de avião do que de carro, etc e tal. Será mesmo? O avião dá a impressão de que estamos completamente a mercê da máquina, do tempo, do controlador de voo, do piloto, etc. Veio-me então a ideia sombria de que a morte poderia estar à espreita e que, por isso, deveria ser lembrada, como quem precisa ficar atento para não sucumbir a um inimigo que nos perscruta. 

Contudo, à medida que pesquisava sobre a expressão, encontrei referências que amenizaram a má impressão inicial. Então passei a encarar esse comando de “lembre-se da morte” como uma reflexão sobre a mortalidade e, de certa forma, como uma ode à vida. Ao nos lembrarmos da morte e da finitude certa a que todos nós estamos sujeitos, podemos canalizar nossa energia em aproveitar ao máximo o que a experiência terrena está nos proporcionando aqui e agora, ao invés de seguirmos, dia após dia, com a ilusão de que sempre haverá um novo amanhã. Nem sempre haverá. Então faça as pazes hoje, usufrua intensamente dos bons momentos agora, ame (e diga que ama) para ontem e viaje sempre que puder. Memento mori para você. Viva o agora.

 Nessa toada, fechei as malas, calcei meus tênis e segui viagem. No caminho para o aeroporto, apertei a mão do meu marido e, sem querer verbalizar a frase bendita para não preocupá-lo fora de hora, repeti-a em mente, dessa vez acompanhada de outra expressão também de origem latina e bem mais conhecida: “carpe diem”. Respirei com prazer e parti para desfrutar o presente, ciente da mortalidade que me atravessa e agradecendo pelo dia que me foi colocado gentilmente nas mãos.

Fuga

A mão apertada contra o meu pescoço esmagava-me.
Meu fôlego ia diminuindo e uma sensação de pânico
tomava conta da minha mente.

Aquele relacionamento abusivo já durava anos. Por
inúmeras vezes apanhei, mas nunca tive coragem de
denunciá-lo.

Agressões verbais, pressões psicológicas, socos, tapas…

Passei pelo inferno nas mãos daquele homem.

Mas ainda assim eu persistia, persistia.

Sempre alegando ser a família, os filhos, a
estabilidade… Ou que ele só estava passando por uma
fase difícil e ia mudar.

Até aquele momento.

O soco na mesa na frente da criança demonstrou que
dessa vez o transtorno poderia ser pior.

– Essa comida está um nojo – ele berrou em seguida.

Já preparada para catar os restos no chão, senti sua
mão apertar meu pulso. Tentei gritar, mas com a outra
ele segurou a minha boca. E jogou-me contra a parede,
lançando na sequência suas patas no meu pescoço.

Tentei me debater.

Em vão.

Vi de canto de olho o pequeno perdido, chorando, com
seu carrinho de brinquedo na mão.

Precisava sobreviver. Nem que fosse por ele.

Uma criança inocente não poderia continuar viva nas
mãos desse monstro. Ele já era uma ameaça para mim,
quanto mais para ele, um ser indefeso. O menino não
tinha culpa.

Então, quando já estava quase perdendo a consciência,
vi uma tesoura em cima do móvel. Era só esticar rápido
o braço e atacá-lo, apenas o suficiente para paralisar
aquele inferno e conseguirmos fugir.

Mas precisava ser um movimento rápido e certeiro,
sem segunda chance.

Meu filho grita, parece entender meu pensamento. E
em um milésimo de segundo, o monstro se distrai. Não
penso duas vezes: pego a tesoura e enfio forte.
O sangue escorre pelo carpete.


(((Silêncio. Nunca mais precisamos entrar naquela casa,
marcada pela dor, e pelo medo)))

***

Texto publicado pela escritora e jornalista Carolina Pessôa na 12ª edição da Revista La Loba, sobre violência contra a mulher. Acesse em: https://drive.google.com/file/d/1BptwzvWL0_Mw8wieV9G-npK7YJgqpNl2/view

SE VOCÊ FOI VÍTIMA DE VIOLÊNCIA, DENUNCIE!


Bicicleta

O vento soprava nos dois.
Seus cabelos esvoaçantes me fizeram regressar no tempo e sorri no íntimo.
Uma pontada de saudade me cutucou.

O rosto dela estava banhado de genuína alegria.
O dele transparecia um esforço sacrificioso.

Ela, sentada, tinha o olhar contemplativo. Apreciava a bonita paisagem que se irrompia a sua frente.
A ele não era permitido desfrutar da mesma forma. Precisava reunir forças para fazer a engrenagem deslizar no trajeto.

Ela tinha os pés suspensos e cruzados.
Os dele permaneciam ocupados cumprindo movimentos cíclicos e constantes.

Continuei dirigindo. E segui, o quanto pude, apreciando absorta a cena daquele pai levando sua filha de bicicleta para a escola.

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