Velas acesas, uma música gostosa tocando e uma garrafa de vinho tinto aberta sobre a mesa da sala.
Sentada na janela, Maria olhava a chuva forte que caía lá fora. Uma taça de vinho na mão, lágrimas nos olhos e um sorriso nos lábios. Estava feliz.
Maria teve uma infância conturbada. Não sentia-se amada, não sentia-se segura, pertencente. Escassez, violência e sentimentos invalidados eram lugar comum em sua rotina. Filha de mãe solo, passava maior parte do tempo sozinha enquanto a mãe trabalhava. Sua mãe era dura com ela. Aos 8 anos Maria já tinha a responsabilidade de cuidar da casa e começava a aprender a cozinhar. Dividia-se entre as responsabilidades domésticas, escolares e um desejo incontrolável de ser apenas criança. Sonhava, criava. Enrolava toalhas na cabeça e fantasiava ter longos cabelos enquanto dançava com a vassoura, varrendo a pequena casa. Queria ter irmãos. Imaginava que assim, terminariam as tarefas de casa depressa e, juntos, poderiam brincar.
Não havia muito diálogo entre mãe e filha, mas a mãe de Maria estava sempre preocupada em fazê-la entender o que era pecado, porque este sim, era o maior dos perigos: a levaria ao inferno. Maria não entendia muito bem, mas frequentava as aulas de catequese, ia às intermináveis missas e começou a pensar que andava pecando por achar tudo aquilo uma chatice. Disse isso de cabeça baixa e bastante envergonhada ao padre ao confessar-se. Era o único pecado de que se lembrava.
Com o passar dos anos, Maria ficou “mocinha” e a preocupação de sua mãe aumentou. Maria começou a entender então o que era pecado, o que era céu e inferno. Era pecado tocar a genitália. Se ela sem querer a coçasse na frente de sua mãe, logo vinha a bronca: tá com a mão aí por que? Não sabe que é errado? Tira a mão daí!
Com a chegada do primeiro namorado, aos 15 anos, sua mãe foi bem clara: se você fizer qualquer coisa que seja pecado eu vou saber. Se algum menino tocar em seus peitos eles ficam caídos. Se tocar em outro lugar (e olhava sisuda na direção da vagina de Maria) o andar da moça muda imediatamente, todos ficam sabendo. Se isso acontecer, nunca ninguém vai querer se casar com você. Nenhum homem quer se casar com uma mulher que passou nas mãos de outro. Vai ficar sozinha o resto da vida, sem família e em pecado. Maria tinha medo de que um dia a chamassem de vagabunda como faziam com a filha de Dona Marlene, uma vizinha querida. Coitada da Dona Marlene, sempre tão bondosa, trabalhadora. Mas não deu sorte com a filha que só lhe dá desgosto, é uma piranha – diziam a mãe de Maria e suas amigas quando conversavam.
É que o céu era encontrar um homem, casar-se, ter uma família. Não conseguir isso era o inferno, era não ter futuro, a comprovação de que você não era boa o suficiente, não era merecedora, não era pura.
Maria, então, seguia cheia de medos e dúvidas as orientações de sua mãe. Beijava seu namorado com medo. Pensava o tempo todo nas mãos perigosas dele que, ao menor sinal de distração dela, poderiam levá-la para o inferno, para o pecado. O namoro não durou muito.
Aos 17 Maria sentia sensações estranhas em seu corpo. Já havia as sentido antes, mas agora era diferente, mais forte, mais intenso, quase que incontrolável. Negava, fingia não sentir, lutava contra, não queria aquilo, orava. Conheceu um rapaz. Esse, mais ousado, tentava de tudo, mas Maria segurava – apesar de gostar do que sentia. Gostava mas não podia. Todos saberiam, seus peitos cairiam. Quando se permitia beijos mais quentes, culpava-se. Chorava antes de dormir e pensava: se ele contar a alguém estou desgraçada, não presto, sou uma vagabunda.
Aos 19 conheceu um homem, Felipe era seu nome. Este dizia que a amava. Maria, que nunca sentiu-se amada, amou a sensação de ter alguém amando-a, cuidando dela. Ele se preocupava com ela como nunca ninguém havia se preocupado antes. Ligava o tempo todo para saber onde ela estava e com quem estava, sabia de todos os seus horários, dos horários das aulas da faculdade. Aparecia às vezes sem avisar para fazer-lhe uma surpresa, ligava no fim da aula e ficava com ela ao telefone até que ela chegasse segura em casa, dizia-lhe que sua mãe nunca cuidou dela direito, que ela merecia ter tido mais cuidado e atenção. Nessas horas ela chorava. Ele era mesmo a única pessoa que a amava e preocupava-se com ela. Mostrou a ela que muitas de suas amigas não eram assim, tão amigas. Aconselhou-a a afastar-se delas. Ele sempre quis o melhor para ela.
Cuidava de suas roupas, dizia o quanto era perigoso usar roupas curtas ou decotadas. Mulheres que andam de roupas curtas demais e decotadas demais são umas vagabundas, ele dizia.
Foi ganhando a confiança de Maria. Disse que tudo que sua mãe dissera era mentira. Os peitos não caíam, o andar não mudava. Ele a amava e queria casar-se com ela.
Maria achou que ele era o céu, que ele merecia o que ela tinha de mais valioso. Ele a amava como ninguém nunca a amou. É claro que merecia! Maria então entregou-se a ele. Ao terminarem, Maria entendeu que aquilo era mesmo um presente para o homem amado porque ele estava muito feliz. Já ela, não havia sentido nada de bom. Quando Felipe adormeceu, ela chorou copiosamente por mais de uma hora. Traiu sua mãe, pecou. E se ele não quisesse se casar com ela? Estava desgraçada!
Com o passar do tempo, os peitos não caíram, o andar não mudou, a culpa diminuiu. Maria sentia raiva de sua mãe. Não achava assim tão bom fazer sexo, mas fazia. Felipe gostava. Suas amigas adoravam e sempre falavam sobre como era bom. Ela não entendia o por quê. Achava bom às vezes, mas nada tão incrível assim. Vai ver aquilo não era para ela.
Um tempo depois, a mãe de Maria desconfiada, perguntou a ela: você se perdeu, não foi? Maria empalideceu. Não conseguia responder. Uma lágrima escorreu e então, sua mãe caiu em prantos: você me traiu, traiu a minha confiança. Saiu do quarto em silêncio. Ficou sem falar com a filha por uma semana. Maria sofreu muito. Culpa, dor, rejeição, sensação de não pertencimento. Precisava sair daquele lugar. Aquele não era o seu lugar.
Aos 22 anos Maria casou-se com Felipe. Teve então o tão prometido céu. O problema é que a tal felicidade não chegava. Maria cuidava dele como quem cuida de um filho, fazia-lhe todas as vontades. Não era suficiente. Felipe estava sempre a reclamar, queixar-se da vida. Já Maria, era alegre, divertida, engraçada. Tinha sempre um sorriso no rosto e uma leveza difícil de explicar, carregava a estranha mania de querer ver a vida bonita. Varria suas dores para debaixo do tapete e seguia.
Sem perceber, foi-se entristecendo. Culpava-se por não gostar do céu, mas não podia ir embora. Família é para sempre. Felipe cuidava dela e sempre lembrava-lhe como ela era infeliz quando vivia com a mãe. Dizia que se não fosse por ele, ela viveria uma vida medíocre. Mostrava-lhe como ele era inteligente e dizia-lhe sentir muito por ela ser tão simples, por não ter um mestrado como ele tinha, por não valorizar as coisas requintadas que ele lhe apresentava. Chegou a chamar-lhe de burra algumas vezes. Ele devia ter razão. Maria adoeceu. Depressão. Felipe dizia-lhe palavras de ânimo e motivação para que ela saísse daquele estado. Dizia que ela estava gorda e ficando feia, desinteressante, que não se cuidava. Você precisa levantar dessa cama, tá cheio de gente passando fome lá fora, morrendo de câncer e você aí, deitada de preguiça.
Isso era motivação para que ela voltasse a se cuidar, levantasse daquela cama.
A parte ruim era quando ele queria sexo. Maria não tinha vontade e culpava-se por isso. Como podia não desejar o homem que a amava? Ele não aceitava um não – e com toda razão. Casou-se para isso. Era homem e tinha suas necessidades. Maria aprendeu a abrir as pernas, fechar os olhos e rezar para que ele acabasse logo. Assim ele ficava calmo, não brigava e ainda lhe abraçava e dizia umas coisas bonitas. Apesar desse jeito meio bruto, ele a amava mesmo.
Maria viveu com Felipe por 13 longos anos, até que ele a deixou. Apaixonou-se por outra.
Num primeiro momento, Maria olhou para trás e desesperou-se. Entregou toda sua juventude àquele homem e agora, estava fadada ao desamor e à solidão. Quem ia querer uma mulher separada? Por que o marido não a quis mais? Boa coisa não deve ser! Nem a juventude tem mais para oferecer.
Depois que Felipe saiu de casa, Maria passou alguns dias sem sair da cama. Uma tristeza profunda a abatia. O que havia feito de errado? Qual era o seu problema? Será que estava ainda mais feia? Seriam as celulites em seu corpo de que ele se queixava? Por que não emagreceu? Ela não era boa o suficiente? A nova mulher que Felipe amava era melhor que ela? Certeza que sim! Melhor em tudo! Afundava-se. Não era nada. Acordou certa vez e não sentia nada. Vazio.
Passados alguns dias, Maria levantou-se da cama, tomou um banho, vestiu uma calcinha e uma camiseta, penteou os cabelos molhados e caminhou até a sala. Felipe não estava lá e não voltaria. Ela estava sozinha. Sentiu paz. Colocou uma música alta e dançou. Pulou no sofá, abriu um pote de sorvete, viu um filme. Sentiu um sopro suave de liberdade. Dormiu como há anos não dormia.
Seguiu em frente mesmo ferida, atravessou conflitos e dificuldades, enfrentou-os. Abriu-se para a vida.
Cerca de um ano depois, Maria conheceu um homem. Havia tido alguns encontros antes mas rejeitava qualquer homem que tivesse mera semelhança com Felipe. Não queria mais saber daquilo.
Esse homem era diferente de Felipe. Despertou seu interesse. O primeiro encontro foi bonito. Maria já havia aprendido um bocado sobre si, estava apaixonada por ela mesma, conhecendo-se, descobrindo-se e não deixaria ninguém atravessar isso. Nunca mais. Amava a si mesma pela primeira vez. Gostava de quem era, de quem descobria ser.
Mas é que esse homem era leve, suave. Não queria atravessá-la ou diminuí-la. Parecia ser o oposto disso. Ela desconfiava, não lhe daria muito espaço, mas abriu uma brecha. No espaço dela, ninguém meteria mais o bedelho.
Tiveram sua primeira noite juntos. A lua iluminava o quarto. Se sentiu bonita. Bastaram uns poucos toques e algumas palavras, aquele olhar sobre ela… Maria sentiu seu corpo arder em brasa naquela noite fria, sentiu vibrar em si partes que ela sequer conhecia. Aquele homem queria dar-lhe prazer. Isso era completamente novo. Ela relutou no início mas relaxou em seguida, permitiu-se, aceitou. Deixou a luz entrar por aquela brecha. Fechou os olhos e desligou-se do mundo. Pela primeira vez não estava pensando no que fazer para agradar, no próximo passo para dar prazer. Não estava pensando em nada. Até que algo estranho começou a acontecer. Seu coração acelerou, seu corpo inteiro parecia não ter mais controle, suas pernas tremiam, a coluna envergava, braços expandiam , abdômen contraía, sua respiração parecia uma música fora do compasso e, de repente, como numa explosão, Maria sentia sua alma elevar-se, sair do corpo ao som de um gemido que deixava seu corpo através de seus lábios. Maria jorrou de prazer. Beijou aquele homem com fome, com paixão , sentia o cheiro do prazer, sentia seu sabor nos lábios dele. Gozou pela primeira. Morreu e nasceu de novo ali, naquela cama. Chorou. Chorou muito. De alegria e de tristeza. Tristeza pelo que lhe foi negado, arrancado. Pela vida de gozos perdida. Por ter acreditado durante tanto tempo que aquilo era pecado. Não podia ser! Aquilo era divino! Ela tinha certeza, era divino!
Abraçou aquele homem e agradeceu. Ele a acolheu. Fizeram amor. Olhos nos olhos, peito no peito, cheiros, sabores, desejo. Aconteceu de novo. Sentiu-se poderosa, dona de seu prazer.
Ela precisava ficar sozinha. Foi para casa.
Tomou um banho, vestiu uma calcinha e uma camiseta, penteou os cabelos molhados. Olhou pela janela e viu uma chuva forte cair. Dentro dela também chovia forte. Tempestade. Colocou uma música gostosa, acendeu algumas velas – ela amava luz de velas; abriu uma garrafa de vinho tinto. Serviu-se uma taça. Brindou com o ar, rodopiou ao dançar, sentou-se na janela acompanhada de sua taça de vinho com lágrimas nos olhos e um sorriso nos lábios. Estava feliz, estava livre. Maria estava no céu. E nunca mais ninguém tiraria isso dela.
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