Eu, mulher

Eu, mulher

Incorporo o canto de gerações na voz

Que gritam, protestam

E entoam toda uma ancestralidade

FORTE

Eu, mulher

Escrevo como escravas, mães, negras, domésticas

Que reivindicam o próprio corpo

Que choram

Não querem ser: MORTAS

Eu, mulher

Cuido, limpo, trabalho, organizo

Corro, resgato

E digo: NÃO É NÃO!

Eu, mulher

Tô sempre devendo uma coisa para mim mesma

Tô sempre na luta, com chuva ou sol, QUE SEJA

Eu, mulher

Carrego um pouco de loucura,

Um pouco de ternura

E até mesmo, ÓDIO

Eu, mulher

Sangro no corpo,

e também, na ALMA

Eu, mulher

Despida,

Nua

VIVO!

Eu, mulher, carrego um cartaz na mão,

E um lombo nas costas

Com a frase, quase uma sentença

EXIJO EXISTIR!

((Esse texto é de autoria da escritora e jornalista Carolina Pessôa. Mais informações no site http://www.carolinapessoa.com.br e no insta @carolinapessoa25))

Um medo de cada vez

Assisti ao filme 100 medos, adaptação do romance de ficção italiano Per Lanciarsi Dalle Stelle, da autora Chiara Parenti. No filme, a protagonista de nome Sole sofre de uma doença que acomete muitas pessoas pelo mundo: ansiedade generalizada. Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) alertam que, somente no Brasil, cerca de 18,6 milhões de pessoas sofrem de ansiedade — o que coloca o país no topo do ranking mundial.

Enquanto via o filme, pensei em várias situações da minha própria vida. Passei a infância e adolescência testando limites sobre rodas: bicicleta, skate e patins. Meu sonho era ter uma moto, tatuagem, uma jaqueta de couro e ouvir Born to be wild. Entretanto, quando confrontada com um carro, perdi a batalha. Dominada por um medo infundado, travei e não consegui dirigir.

A sensação que a personagem Sole experimenta ao tentar trabalhar, encontrar pessoas, ou fazer uma faculdade, é demonstrada por meio de sua inquietação, mãos que se contorcem, um olhar que não sustenta o olhar do outro e a prostração na cama. É tão atordoante que a paralisa e impede sua vida de continuar. Não tem uma causa específica, e isso está claro desde o início.

O filme Depois a Louca Sou Eu, inspirado no livro da Tati Bernardi com o mesmo nome, traz à tona tema semelhante: a loucura causada pela ansiedade, por medos infundados e sem nenhuma lógica. Tati é loquaz e se abre inteira nesse livro. Suas desventuras são hilárias, e a gente se encontra de novo nesse lugar, de ser mulher e sentir a pressão de um jeito que só uma mulher conhece.

Para quem vive nas grandes cidades, ansiedade é um sentimento comum. Ora é o trânsito pesado, ora é a insegurança de andar nas ruas. E basta alguém olhar diferente para o coração palpitar e as mão começarem a suar. Poderia ser paixão? Poderia, mas normalmente é só o medo te estapeando por dentro. Quantas vezes uma mulher desce do ônibus antes de seu ponto, ou muda de calçada na rua? Não é fácil distinguir um cara que está apenas flertando de um assediador. Aos rapazes, melhor esperar para jogar seu charme quando a mulher também estiver buscando isso.

No filme 100 Medos, Sole quer andar de bicicleta e superar um dos seus medos de infância, mas não consegue. Se tem medo, melhor não correr o risco. O pensamento dela coincide com o de muitas pessoas, é difícil enfrentar aquilo que te gera ansiedade. O medo de dirigir, por exemplo, tem até nome, amaxofobia, e ataca cerca de 6% da população brasileira. Não consigo dissociar o trânsito do desenho do Pateta, enlouquecido atrás do volante. É como se todos os carros estivessem competindo para saber quem chega primeiro. Aonde? Ninguém sabe dos outros, quando mal se sabe de si.

Tanto no filme italiano quanto no brasileiro, há um ponto de inflexão. Tati Bernardi leva sua personagem para os remédios tarja preta para encarar seus medos. Sole encontra amigos e começa a testar seus limites. A mensagem do filme italiano é de esperança, com uma abordagem leve e romântica do problema. É possível viver e ir superando um obstáculo de cada vez com apoio e terapia. Sole tem uma “to do list” de medos a enfrentar. Conforme supera um item, passa ao próximo.

Lembrei da minha própria lista de lugares a ir quando, com mais de trinta anos de idade, fui para uma escola de direção para pessoas com fobia. Terapia, apoio e uma lista. Na escola, vi que não estava sozinha. Não foi tão rápido para mim quanto foi no filme, mas foi igualmente libertador. No filme brasileiro, a protagonista escreve, transborda suas questões para o papel. Como não gerar identificação?

A ansiedade rouba o momento presente para nos lançar num futuro em que tudo deu errado. Embora não consiga romantizar o problema, entendo a mensagem por traz dos filmes: para muitas coisas na vida a gente pode se permitir uma segunda chance. E, talvez, com um grupo de apoio e terapia, uma escrita que nos leve a outros lugares, seja possível superar um medo de cada vez.

Minhas cartas

Eu tinha um punhado de cartas

guardadas

que… sequer escrevi.

Tive também algumas cartas

que o vento entregou 

e eu nem vi.

Eu tinha um punhado de cartas

na ponta do toco gasto do lápis, 

escritas com pressa 

ou com raiva 

que com a borracha desfiz.

Guardo ainda

tantos,

envelopes aos milhares

para cartas que ei de escrever.

Já as contemplo ao fechar os olhos, 

bordadas em minha mente,

para quem nesse gesto 

conseguir ler.

Queria sela-las todas

com cera e carimbo

– tal qual antigamente

Cartas perdidas no tempo,

por mim achadas no limbo…

Para que tanta carta?

Às vezes me questiono…

Já nem se usa mais…

Uma carta, duas ou três,

sendo tão obsoletas, tanto faz…

Agora minhas cartas são só afetos

ou talvez confessionários

de eu líricos livres e loucos

em livros abertos e ordinários

Transbordo solidão

em soneto
o auto retrato
remoo vidas
desespero
afogo mágoas
lavo alma
transbordo solidão
companheira única
do presente
que passado deixou
não me reconheço
reflexo
mergulho profundo
deságuo ruínas
pedaços de mim
coração já não bate
voz ressoa
Canção do Exílio
em cômodo
faço abrigo
bebo dores
rogo a Deus
que não me salvou

será o fim?

Poeta, professora e atriz, Mahelle Pereira tem mais de 20 anos de carreira em teatro, além de grande experiência ensinando a arte para crianças e jovens. Como poeta, procura expressar o eu interior com estilo e intensidade únicos.

PERNAS PRETAS EM VARANDAS DE VIDRO

Dia desses precisei sair da minha rotina

Em um horário inusitado, fui fazer esteira no estúdio que frequento

Sempre que olho pelas janelas de lá, é noite

E vejo as varandas vazias, a maioria com as luzes apagadas

Mas naquele dia, à luz do sol de quase meio dia

Vi algo que me tocou profundamente

Vi diferentes pernas

Em diferentes andares

Nas varandas de vidro

Elas tinham algo em comum…

Eram pretas

Pernas pretas em varandas de vidro

Pernas pretas em bairro nobre

Pernas pretas na casa dos outros

Pernas pretas varrendo

Em movimentos de arrastar, abrir e fechar

Pernas seculares

Pernas carregadas de ancestralidade

Confesso que senti um certo enjoo

Um vazio

Um sopro de desesperança

Quantos anos mais?

Décadas?

Gerações…

Então abaixei meus olhos

E vi pernas pretas caminhando na esteira

Eram minhas próprias

Ali

Do outro lado do estúdio de vidro

Então pensei

Que para as minhas pernas

Estarem ali

Quantas antes de mim estiveram do lado de lá

E quantas ainda estarão

Pernas pretas

 (DES) LOCAR

Ocupar espaços

Atravessar

Romper ciclos

Não há problemas em ver pernas nas varandas de vidro

O dissabor é serem monocromáticas

Datadas

Marcadas.

Sentido

Reciprocidade não se pede e muito menos se mede, é um sentimento de conforto com alguém que já gostava ou aprendeu a gostar por causa da convivência e algo do tipo. Costumo dizer que é uma das palavras mais bonitas no seu significado e sentimento imbuído em seu interior, por tantas razões que não caberiam em um só texto como cabe em uma palavra de treze letras.

O meu amor por quem gosto é algo conquistado para que se faça presente mesmo com toda a distância de um dia corrido, sou daquelas pessoas que na primeira vez que me conecto com alguém e me identifico começo uma conversa como se já conhecesse a pessoa há séculos. E realmente, pode ser que a gente se conheça de uma outra vida, vai entender. Todos merecem receber o tanto de amor que dão pois assim ninguém vai se sentir vazio ou cheio de mais.

Meus amigos são minha família que pude conquistar e escolher aqui na Terra, eu agradeço a existência de cada um pois eles se transformam sempre em uma força que cresce dentro de mim, me ajudando a continuar firme e lutando por todos os meus sonhos. A vida está longe de ser um mar de rosas, porém ela se constitui de um mar de oportunidades que cabe a nós como seres humanos “racionais” sentir se uma delas se encaixa em nosso propósito e trabalhar em busca dele.

Admiro pessoas que trabalham duro, que não dormem direito e mesmo assim são presentes e competentes no que fazem buscando o bem maior para a sua totalidade humana. Admiro pessoas reais e é essa a grande diferença, elas dizem o que precisam fazer e quando menos se espera o resultado chega a partir do trabalho feito em momentos que ninguém imagina. São pessoas humanas que fazem com que eu acredite que nossa vida no Planeta Terra tem um propósito maior e melhor para continuação da nossa espécie. Acredito no poder do sonho e da atitude, ainda mais em uma realidade que quem mais iria te dar apoio, te deixa as moscas no apoio mental e não reconhece o teu empenho junto com toda a carga que você carrega.

Para mais textos, visite personasdegaia.wordpress.com e siga a autora nas redes sociais: @personasdegaia.

Mulher Selvagem

Sabe aquilo que a razão não explica? Que te faz ser única? Te faz correr atrás do que sonha? Agir inconsequentemente, às vezes, para não perder o que/quem ama? Te faz chorar e rir em questão de segundos? Desperta quando passa um batom vermelho e coloca uma saia até o chão? Te faz dançar no batuque de uma música? Te deixa embriagada à luz do luar?

É a tua mulher selvagem gritando, implorando por liberdade!

Em cada uma de nós habita uma mulher selvagem, um lado feminino primitivo, ancestral.

Grita contra um patriarcado que impõe regras, limites e não nos deixa seguir livres.

A mulher selvagem não é aquele estereótipo da mulher que não se depila, que não aceita ser cuidada, que odeia homens, que se iguala nos papéis. A mulher selvagem é um conjunto de arquétipos que vive em nós e que nos realiza em cada um dos nossos papéis: mãe, esposa, solteira, profissional, amante, filha, amiga, irmã.

É o ego fortalecido que sabe dosar os desejos do ID (instinto), sem ser anulado pelo superego (o que esperam de nós).

A mulher selvagem te ajuda a lutar pelo que deseja, se defender de relacionamentos abusivos, encontrar tua beleza e força, despertar tua feminilidade, acolher e realizar teus desejos, libertar-se de padrões e reconhecer e conjugar teu eu com a natureza e a espiritualidade.

É a voz da intuição, é o sopro da autoestima, é o beijo do amor próprio.

Como deixá-la atuar?

Observando teus ciclos, conhecendo teu corpo, lendo, participando de círculos de mulheres, observando e acolhendo seus sentimentos, fazendo terapia, se permitindo mais, andando descalça, consumindo menos, dando um tempo das redes sociais, dançando, preparando uma refeição, amando e se amando, fortalecendo outras mulheres.

A Mulher Selvagem abomina a comparação. Se você se sente inferior, acaba com tua confiança; se se acha superior, corre o risco de ser laçada pela soberba, pelo egoísmo. Não há nada de bom na comparação.

É a mulher selvagem que te ajuda a se reerguer nas agruras da vida, é ela que te sopra no ouvido o que fazer. E para cada crença, atribui-se esse poder a fatores e atores diferentes. No entanto, é sempre ela que grita e te guia para te ver forte e feliz.

Autoconhecimento é a chave para permitir que a Mulher Selvagem aja em e através de você.

Fica o convite: experimente ouvi-la e deixá-la livre!

BOA GENTE

A miséria alimenta uma classe tão boa e tão distinta
Que ao ver a nossa fome
Logo se move
Começa a barganhar

Cai o preço da faxina
E por um prato de comida
Voltamos a trabalhar
Ensinaram-nos que o pouco pode virar nada
É pouco que devemos aceitar

No meio dessa disputa
Um prato no restaurante
Vale mais que a noite da babá

Mas essa gente tem valor
Está aqui para ajudar
Nos oferecem até um quartinho
Em troca de trabalho
Se por acaso quisermos ficar
Mas temos que ficar caladas, nem pensar em reclamar
A jornada é dia inteiro
Café, almoço, lanche e jantar
De pé antes do galo cantar
Deitar só depois da família descansar
Podemos sair a cada quinze dias para ver a família e festejar
É mesmo muita sorte ter um lugar pra morar
Viva meu sinhô, viva minha sinhá!

Já não há constrangimento
Em tamanho descaramento
Dessa gente que é melhor que outras gentes
E só quer nos humilhar
Porque só assim entendemos nosso lugar
Chamam eles de humanos
Eu não sei do que chamar

De posse da palavra-chicote
Nos chamam de preguiçosos, vagabundos
Logo nós, que erguemos o mundo
Dizem que não queremos nos esforçar
Gritam isso aos quatro cantos
Do cume, de seus tronos
Que herdaram sem lutar

De barriga cheia e com seus filhos na escola
Jogam comida fora
Vão ao médico a toda hora
Tudo particular
Para nós, só o que resta
Até com o SUS querem acabar

Hoje fiz uma faxina
E ganhei oitenta
A conta de luz  já vou pagar
O meu preço é cento e trinta
Mas a patroa não tinha para dar

Meu filho descarregou um caminhão
Serviço de máquina, de humano não
Carregou mais peso que qualquer corpo esmirrado pode suportar
Trouxe para casa comida e pão
Junto com estes, muitas bolhas nas mãos

Agradecemos, ainda temos o que comer Ainda temos cama para deitar
Mas antes do corpo descansar,
Ajoelhar e rezar
Pedir por saúde
E para a fé nos sustentar
Já que nem doentes podemos ficar
Até com nosso Deus eles querem acabar

Uma reza para numa fresta
A esperança enxergar
Rezar por minha gente
Abrir os olhos, respirar
Sair de casa novamente
Pela manhã escura
Para esta guerra enfrentar
E voltar vencido
Na dor de um corpo moído
Na desesperança que faz a alma sangrar

Associação dos Atrasados Anônimos – Parte 2

Samara veio com um sorrisão feliz na minha direção. Olha, não é que simpatizei com a menina?

Saímos dali direto para um café, não podia perder a oportunidade de conhecer a fundo uma alma gêmea. Descobri durante a conversa que ela era redatora de uma revista literária superbacana. Óbvio que tinha assunto para mais uma xícara de café, dessa vez acompanhada de uma fatia de bolo de laranja fofinho. Eis que, ao olhar meu smartwatch, estávamos atrasadas de novo, juntando as bolsas e nossos apetrechos tecnológicos, vivendo uma daquelas cenas em que os palhaços se atrapalham na pressa de não deixar o fogo se espalhar pela tenda. Eu tinha um compromisso inadiável com a dentista, Samara tinha de voltar para o escritório, e assim trocamos contatos e deixamos a conversa para outro dia.

As manhãs na AATA eram sempre assim. A gente se encontrava, relembrava os problemas que chefes incompreensivos nos causavam, histórias das pessoas que não nos entendiam, e ao final, firmávamos o compromisso de não mais atrasar por uns poucos dias da semana seguinte. Ou ainda, tínhamos a opção de não atrasar em um determinado número de compromissos, caso um dia inteiro fosse demais para nossas parcas forças. A cada vez que evoluíamos – menos atrasos era igual a mais evolução – ganhávamos uma estrela nas dez possíveis. A solenidade de entrega da estrela era transmitida simultaneamente nos nossos currículos nas redes sociais. A famosa limpa-ficha.

Eu tinha conseguido sete de dez estrelas, e estava cada vez mais próxima do meu ateste padrão. Mais uma estrela no currículo e isso me permitiria voltar a atuar nos casos como advogada. Minha nova amiga, Samara, ainda tinha muito a aprender, era “duas estrelas”, prestes a ser demitida se não seguisse à risca o que a AATA ensinava. Nunca terminava a leitura de um livro no prazo para publicação na revista, o que lhe rendia a constante depreciação da nota. Enquanto a vida estava em suspensão, li alguns livros indicados por ela, e tive muito tempo para refletir e estudar sobre minha futura nova profissão.

Os atrasos vistos assim de forma isolada eram algo que pertencia à pessoa, estava no espectro do indivíduo. Eram julgados como falta de esforço, falta de comprometimento e outras coisas parecidas. Mas eu acreditava que existia muito mais por trás disso, um lugar escondido dentro de nós que ninguém naquele grupo de apoio queria acessar, por medo de enxergar a realidade. Nem mesmo nosso orientador, que nos fazia preencher formulários CCH – Comportamento Comprometido com o Horário, matrizes de forças e fraquezas para cada sucesso e fracasso, e nos estimulava a continuar marchando, sempre em frente, rumo às estrelas que brilhariam em todas as telas. Nem mesmo ele queria falar sobre essas sensações que nos cercavam.

Para mim, havia uma cidade com mais gente que rua para circular, e telas gigantes cobrindo os prédios com imagens de pessoas fazendo algo que parecia ser muito melhor do que trabalhar. Também havia a tristeza das tarefas repetitivas, de estar sempre defendendo o direito de um cliente que não queria mais estar conectado em tempo integral, e das constantes negativas de juízes que achavam necessário estar sempre disponível na rede (como alguém poderia querer se isolar do mundo? Inconcebível!).

Havia os múltiplos compromissos que tínhamos que assumir para simplesmente pagar o aluguel da nossa tiny house, um nome chique para uma casinha minúscula. O medo de ficar sem ter onde morar era um forte propulsor do movimento “saia já da cama”, mas viver com medo também impulsionava o desejo de ficar na cama. Eu tinha outros problemas a tratar, é bem verdade, eu sei. Mas por enquanto este estava sob controle.

Para me sentir mais motivada, estabeleci o propósito de ajudar Samara a ganhar estrelas. Ela me entendia e eu tinha percorrido aquele caminho com o apoio do Felipe. Um cadinho de sororidade não faz mal a ninguém. Lia os livros ao mesmo tempo que ela e compartilhávamos nossas impressões. A garota ruiva de uivo selvagem não atrasava mais seus prazos, e eu, a cacheada cor de bronze, parei de perder tempo escovando os cabelos. Melhor uma audiência no horário, do que um cabelo esvoaçando.

No dia da cerimônia de entrega da estrela, cheguei antes de todos. Recebi amigos e família na porta da AATA com um cumprimento firme, assim como me sentia. Felipe estava ao meu lado, e o sorriso que ostentava dizia: estou orgulhoso de você. Samara chegou logo em seguida, minha parceira que ajudou nos primeiros passos da nova carreira. Aliás, carreira que só consegui abraçar depois de criar uma rotina organizada. Não era tão mal assim chegar nos compromissos no horário e isso me permitiu ser advogada e escritora.

– Boa noite, pessoal! Eu sou a Fernanda e superei o atraso crônico.

Depois de aplausos emocionados e comidinhas de festa, seguimos para casa. Eu estava feliz, de fato, mas havia algo que me incomodava, um sentimento que fui compreendendo a partir das leituras com Samara. As redes eram nossa prisão. As estrelas nos remetiam aos tempos antigos, palmas para quem fez a lição toda.

Os trabalhadores estavam certos, tínhamos o direito a desconexão. Uma nova motivação se formava, e eu estava pronta para a batalha.

Associação dos Atrasados Anônimos – Parte I

[PARTE I – AATA – OU COMO FUI PARAR NUM GRUPO DE APOIO PARA ATRASADOS CRÔNICOS]

– Bom dia, pessoal! Eu sou a Fernanda e sofro de atraso crônico.

A meia dúzia de participantes, além do orientador, me respondeu um bom dia desanimado. O grupo era grande, mas como o nome sugere, somos atrasados crônicos. Sempre adiantados até que chegue a hora em que estamos muito atrasados. Então você entendeu corretamente, o restante do grupo estava dolorosamente a caminho quando comecei minha apresentação.

Um arrastar de cadeiras desviou a atenção de todos, uma confusão causada pela entrada de uma mulher esbaforida com metade da maquiagem no rosto. Me olhou cúmplice enquanto tentava não tropeçar nas próprias pernas e, deixando de ser novidade, o grupeto voltou os olhos para mim.

– Me sinto feliz hoje porque atrasei apenas 6 minutos para a reunião! – aplausos ruidosos se fizeram ecoar na sala e a mulher recém-chegada, que logo se apresentaria, uivou entusiasmada.

Eu informei que foi a muito custo que consegui chegar lá, mas o orientador lembrou que a reunião começaria mais cedo se chegássemos no horário. Fiquei chocada! Que homem sem coração! Ainda assim, ele me parabenizou pelo esforço.

Pois bem, é óbvio que eu não estava ali voluntariamente. Estou nesse grupo há seis meses porque Felipe me implorou para fazê-lo. De início achei que fosse um pedido fofo, mas ele realmente insistiu que eu procurasse ajuda ou ele mesmo o faria. Segundo Felipe, eu precisava de acompanhamento permanente. Eu não pensava assim. Ao contrário, devia existir um grupo de adiantados crônicos, doentes de ansiedade que chegam duas horas antes em qualquer compromisso. E se for para viajar, chegam de véspera na estação (ou no aeroporto). Felipe seria o primeiro inscrito!

A insistência não era despropositada. Em minha vida como advogada tudo estava sempre atrasado, inclusive as audiências. Me acostumei a chegar “no laço” ou, no máximo, com trinta minutos de atraso, afinal, o que são 30 minutos em 24 horas? Não era tão ruim assim. Como toda história de sucesso tem um revés, houve um dia, um único dia, no qual as coisas saíram do controle: uma juíza pontual e mal-humorada penalizou meu cliente pelo meu jeito. E suspendeu minha inscrição no conselho de advogados até que minha ficha estivesse sem a mácula dos atrasos. Nessa ocasião, eu tinha apenas três estrelas.

Felipe não perdia a fé em mim. Apesar da minha suspensão, um mês depois estava ele lá, prontão de noivo no cartório, e eu nunca de chegar. Sempre que me ligava eu dizia que era qualquer coisa relacionada com o trânsito, a chuva, a cidade abarrotada de carros (mentira, mentira, mentira), e me atrasei de tal forma que o casamento teve que ser adiado para o último horário da fila. Entrei linda e triunfante naquela sala cinza sem ornamentos, e tive que ir para um cantinho nos fundos, pedir desculpas aos convidados pelo inconveniente e ver minha make e penteado se derreterem. As fotos estão aí para contar. Essa ainda não foi a gota d’água para Felipe.

As coisas pareciam estar melhorando para mim, mas de novo eu me atrasava. E isso durou até o fatídico dia em que chegamos no ponto em que os pedidos delicados de “não se atrase muito” se tornaram um “não aguento mais seus atrasos”. Como critério de segurança, ele começou a anotar nossos compromissos em uma agenda compartilhada.

Estava tudo certo para jantarmos num restaurante. Acessei a agenda, me aprontei rapidamente e cheguei no restaurante quase no horário marcado. Naquele dia me atrasei apenas dez minutos, uma façanha e tanto! Tudo bem que, desde que eu havia sido suspensa das minhas atividades, aquela corrida frenética casa-escritório-fórum-escritório-casa, também não existia mais. Eu tinha tempo para escovar os cabelos cacheados com calma até que ficassem bem lisos e brilhosos, pintar as unhas sem borrar, e fazer todo o preâmbulo perfume, maquiagem, roupa, com a calma de quem acordou num domingo preguiçoso. Depois desse ritual, ficar pronta era bem rapidinho.

Enquanto isso, Felipe cruzava a cidade feito um louco para me encontrar e acabou se atrasando. Bem, na verdade, ele chegou adiantado dez minutos, mas eu não sabia disso ainda. O verdadeiro critério de segurança que ele usava nas agendas era anotar que nossos compromissos começavam sempre meia hora mais cedo. Quando ele chegou eu estava possessa por um demônio, com cara de quem chupou limão, e a noite foi um inferno. Empatia? Zero. Conceito novo esse? Essa foi, de fato e de direito, a última gota d’água num copo cheio de desculpas pedidas com biquinho e risinhos sedutores.

Voltando à reunião da AATA, Samara, a moça da meia-maquiagem, falava exatamente sobre isso, empatia. E como as pessoas que nos cobravam estar a tempo em todos os lugares não sentiam empatia por pessoas como nós, que sofriam com a pontualidade e o excesso de atenção que davam ao assunto.

Depois dessa fala, parei bem na entrada da sala e fiquei aguardando o momento que ela atravessaria aquela a porta. Ela não iria embora sem ouvir minha verdade e eu tinha muito a dizer.


(Esse texto é de autoria da escritora Elaine Resende. Mais informações no insta @cria.elaineresende)

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