Mal caía a tarde e eu começava a cantarolar os versos decorados do livro que eu não largava mais e que tinha tomado como meu. Passava o dia com o livro embaixo do braço, lendo-o e cantando com voz baixinha e aguda, quase um sopro, desafinando aqui e acolá, avançando corajosa nos versos recém-decorados. Meu olhar ansioso buscava aprovação e perguntava: “E aí, pai? Tô cantando bem? Viu que agora sei a música quase toda?” Ele, ainda com a roupa do trabalho, dava atenção às minhas urgências infantis, mesmo estando cansado da labuta. Nessa fase, a música preferida e que eu tentava decorar era “Maninha”:
“Se lembra da fogueira?
Se lembra dos balões?
Se lembra dos luares dos sertões?
Eram tempos sem celular, sem as mensagens rápidas que vencem quilômetros em fração de segundos. Naquela época, para a audição doméstica, eu precisava esperar um dia inteiro para o meu pai chegar do trabalho, presencialmente, ao vivo e em cores. Tê-lo como plateia era suficiente.
Não lembro o nome desse livro de estimação do qual me apropriei com menos de dez anos de idade. Mas recordo que se propunha a ter toda a obra de Chico Buarque de Holanda à época. Dentro da capa azul marinho e com a foto em preto e branco do Chico em perfil (pelo menos é assim que me lembro) havia letras de músicas e peças teatrais. Naquela época, ele ainda não havia publicado livros.
Meu pai já era fã do Chico. E, por ser fã, sabia de histórias sobre ele e sobre as músicas que havia composto, o porquê de determinadas letras, as circunstâncias que inspiravam determinada música, etc. Eu absorvia com avidez aquelas histórias e me deixava flutuar nas ondas das músicas que vinham dos seus vinis ou fitas cassete. Aos domingos, acordava ao som da Rádio Universitária FM e tomava café da manhã enquanto uns sambinhas preenchiam despretensiosamente a manhã ensolarada. Era deliciosa essa atmosfera da manhã preguiçosa do domingo. Enquanto eu despertava em câmera lenta, meu pai estava a todo vapor, cuidando do quintal, regando as plantas e alimentando as galinhas com nome de gente e que não tinham a menor chance de irem para a panela porque não iríamos conseguir comer o Jabes ou a Zélia ou qualquer filhote deles.
Na adolescência, as músicas de crítica social eram as preferidas. Muitas faziam alusão ao tenebroso período da Ditadura Militar. Àquela altura, o livro antes inseparável tinha cedido a vez para outros da estante do meu pai, como “Brasil nunca mais”. Anos depois, começando os estudos que iriam desembocar em uma faculdade de engenharia, as músicas “Pedro, pedreiro” e “Construção” me chamavam atenção e me traziam a injustiça social em um cenário de canteiro de obras: “seus olhos embotados de cimento e lágrimas”.
Com o passar do tempo, e por motivos óbvios, o idealismo da adolescência cedeu espaço para as canções de amor que passaram a ocupar um espaço especial em minha playlist. Nas palavras do Chico, até a dor de cotovelo mais banal ganha poesia e, muitas vezes, a companhia de um sambinha , como em “Rita”:
“A Rita levou meu sorriso
No sorriso dela
Meu assunto
Levou junto com ela
E o que me é de direito
Arrancou-me do peito
E tem mais”
Dia desses estava dirigindo, levando minha caçula como passageira e tocou “Geni e o Zepelin”. Uma música forte que nos escancara sobre como o corpo feminino pode ser tomado como um objeto e, pior, como a sociedade patrulha o que fazemos com ele. Disse para Bel prestar atenção na letra e, para minha surpresa, ela disse: “Eu já conheço, mamãe. Um professor passou na escola”.
Em meados de Julho desse ano, eu soube que o Chico estaria em turnê e que viria à Fortaleza. Três meses depois, eu e meu pai, juntamente com meu marido e uma de minhas enteadas, fomos ver o Chico cantar algumas das músicas que nos embalaram ao longo das nossas vidas, juntos ou nas estradas solitárias que cada um precisou trilhar em diversos momentos. Passamos meses combinando esse encontro. Meu pai que é um leitor contumaz e que devora vários jornais por dia, já tinha me dado detalhes da turnê e me perguntado se eu conhecia a nova música que dava nome ao show: “Que tal um samba?”. Tratei de me atualizar sobre um Chico também atual, para além das clássicas canções que permearam minha infância, adolescência e começo da vida adulta.
Assistir a um show de quem se admira é uma experiência fantástica e emocionante. Meu pai nunca tinha tido a oportunidade de ver o Chico cantar ao vivo. Aos 83 anos, era a primeira vez dele (e minha). Então cada momento da experiência, desde a saída de casa até os aplausos finais e o cerrar das cortinas, foi saboreado em cada detalhe. Não posso deixar de registrar que o momento político e histórico da realização do show deixou a atmosfera ainda mais especial, em um festivo movimento coletivo de esperança e fé na democracia e na nossa liberdade de expressão.
Também não pude deixar de pensar que aquele encontro “presencial” com o Chico foi antecedido por vários “encontros” anteriores: nas leituras, nos vinis, nos CDs e no aplicativo de música… Também refleti o quão longo foi o nosso percurso desde aqueles fins de tarde em que eu cantava para meu pai até o dia do show, quando eu o levei pela mão para ver o que sempre desejou mas que ainda não tinha conseguido realizar. A música “Maninha” diz que “eu era tão criança e ainda sou”, o que é um pouco verdade. Naquele show, eu ainda era a criança cantando “Maninha” para meu pai ouvir. A diferença é que, dessa vez, junto à minha voz, havia a dele, a do Chico e de mais um tanto de pessoas na mesma vibração.
Ahh, que delícia ! Um passeio prazeroso , intimista e familiar (parece que vivemos também esses momentos ) , por ser autêntico, passado e presente ! Um presente pra nós !
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Seu comentário também é um presente. Obrigada!
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Estou em lágrimas… lindo texto. Senti como se estivesse lendo uma literatura clássica e muito bem narrada. Emocionante. Queria um livro seu… Parabéns, Lidiane!
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Que linda a sua emoção! Fico muito feliz. Quem sabe não teremos um livro, no futuro?
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Show, Liddy 👏👏👏👏👏
Literalmente. 😍😍😍
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Obrigada, Neudy!
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Acaba que o show verdadeiro é a vida, são os encontros e momentos aproveitados, os ensinamentos sorvidos despropositadamente, apenas por admiração e amor.
Quem aproveita esses momentos vive e faz parte do show.
Parabéns a seu pai, a você e sua filha por terem tido a oportunidade e a sensibilidade de valorizarem esse momento precioso, cada um da sua forma.
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Verdade, Edi! O maior show mesmo é a vida e os tantos encontros que temos ao longo dela. Obrigada por seu comentário!
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Que belo texto Lidy, parabéns por ter proporcionado esse momento mágico ao seu pai, fã número 1 de Chico Buarque. Tenho certeza q ele será sempre grato por terem compartilhado juntos esse grande encontro.
Beijão
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Ele ficou muito feliz! Disse q foi um sonho realizado! E se emocionou com o texto também.
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Seus textos nos transportam para a essência da vida. Momentos simples, vivenciados…..marcantes, muitas vezes desapercebidos pela agitação da vida moderna. Após a leitura , me permiti parar e viajar em algumas experiências inesquecíveis ao longo da minha caminhada. Agradeço por ter despertado e me proporcionado esse momento! Obrigada!
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Não há presente maior para quem escreve que saber que foi lida e que a leitura agregou algo a vida do leitor. Fico muito feliz!
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Seu belo texto me levou ao tempo em que, como você, aprendi sobre o mundo por intermédio da poesia do Chico; e, sem mais nem menos, senti o cheiro de “almas com perfume de jasmim”. Parabéns e obrigado por nos permitir essa leitura.
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Muito feliz em saber que o texto lhe trouxe lembranças tão felizes. Obrigada por compartilhar!
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A simplicidade é o último degrau da sabedoria. (Khalil Gibran)
Achei ótimo o valor dado ao pai, sobretudo por sua suficiência como único expectador.
Ao ler o texto lembrei inclusive da ex-ministra da Economia, Fazenda e Planejamento do Brasil.
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Minha amiga, que crônica com sabor de esperança e realização. Chico é maravilhoso, mas é a sua união com seu pai que torna esse momento encantado. Feliz demais por ter lido o seu partilhar. Emocionada por Maninha. Bjs
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Que lindo, Elaine! Muito obrigada!
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