A última barca para Paquetá

Ela me ofereceu um cigarro tirado de uma cigarrilha cravejada de brilhantes. Eu havia envenenado meu fígado de muitas maneiras diferentes antes de me sentar naquela amurada, tinha acabado o happy hour e não consegui pegar a última barca pra Paquetá.

Aquela oferta me fez fixar o olhar em quem só de lado me fitava. Um mulherão da porra. Em outros tempos eu nem pensaria duas vezes em convidar pra esticar a noite. O vestido de paetê preto balançando de mansinho com a brisa que fazia chuá na baía, as unhas pontudas com a mais perfeita empunhadura, meu cérebro sem raciocinar, só reagindo àquela visão, e minha mulher esperando em casa.

Virei pro lado e senti quando ela tocou em meus dedos para aproximar seu cigarro do meu. Ela tava na minha, não fosse a maldita abelha que surgiu e ferrou com a minha noite e com meu braço esquerdo. Putz grila, que dor!

Levei o cigarro ao canto da boca pra afastar a maldita abelha. A mulher me provocando como se eu fosse o Casmurro e ela a Capitu, com seus olhos de cigana dissimulada. Jogou os cabelos e sussurrou algo que entendi um convite, um te vejo mais tarde.

Me dá seu telefone?

Eu te encontro, não precisa se preocupar…sei onde você mora…

Merda! Era alguma sacanagem, minha mulher deve ter contratado ela pra me espionar, só pode ser isso. A malandra deixou um rastro de fumaça e me impregnou de um cheiro de flor, eu conheço esse cheiro, mas não me vem agora.

Comecei a duvidar se era uma abelha ou um escorpião. A dor irradiava pro peito. E aí ouvi o apito. Uma barca extra para Paquetá era tão rara que me senti abençoado.

Certo, não podia perder essa, senão no dia seguinte eu não estaria aqui para contar essa história, minha mulher se encarregaria pessoalmente da minha morte. Pulei da amurada tão rápido que me senti com vinte anos outra vez.

As catracas estavam liberadas, nem paguei a passagem. O saguão na penumbra da noite, estação vazia, uma barca menor que as normais. Horário especial, barca especial, ok, ok.

Cumprimento os marinheiros que estão no convés e vejo o brilho do paetê sob uma luz difusa na área dos passageiros.

Ela me seguiu? Sabia quem eu sou?

Estaco em meu lugar com a voz do capitão que solicita meu bilhete.

Por quê? Quero saber.

Pra onde você vai?

Pra Paquetá.

Mostra o bilhete.

Não era um procedimento comum, mas eu topei. A noite também estava incomum. Boto a mão no bolso e puxo o bilhete, mas só tinha uma moeda de 1 real dourada, que o capitão disse que estava tudo bem por ele. Nunca foi tão barato dar uma propina. Olhei para o nome na tarjeta de identificação: Carontti O-. Italiano, com certeza. E tipo sanguíneo O negativo é raro. Hum! Minha mulher adora essas histórias de coincidência, quando chegar em casa e contar pra ela, vai ser um passa hora.

Falou que a mulher me esperava lá na frente, que uma dona como aquelas não se deixa esperando, pode ficar brava.

A barca serenou no mar, ajustando meu prumo que ainda sofria do efeito da bebida. Pisei fofo no chão, estufei o peito e ergui o queixo, ganhando confiança a cada passo.

Me sentei ao lado da dona, o cheiro impregnando minhas narinas. Queria perguntar algo a ela, seu nome, de onde me conhecia, mas ela fez um gesto sensual pedindo meu silêncio. Segurou meu rosto com as duas mãos e se encaminhou na minha direção, pronta para o beijo. Os lábios vermelhos carnudos me possuíam.

Então me lembrei de onde conhecia o cheiro. É crisântemo. Como eu pude esquecer? Não tem mulher esperando em casa. Ela se foi há 7 dias. Aquela sensação de tristeza invadindo o corpo, tomando conta de tudo. Por isso estava bebendo, não tinha nada para comemorar, uma sad hour. Acabou a missa na candelária, pensei em voltar, mas voltar para quem? Minha mulher, que saudade da minha mulher. Que falta ela me faz. Pra quem vou contar as histórias?

Afastei a moça com toda gentileza possível, a sensação de que o peito ia explodir a qualquer momento. Então meu coração parou, e não ouvi mais nada.

No dia seguinte a cabeça estava bastante dolorida, uma rebordosa de toda a cachaça da noite anterior. E o mais estranho, não sabia como tinha chegado em casa. A moça deve ter pedido para algum dos marinheiros me colocar no rumo, já que a maioria deles me conhecia na estação.

Uma mulher de meia idade me pergunta se estou sentindo alguma coisa.

Quem é essa mulher? Não consigo abrir muito os olhos, só ouço sua voz e sinto seus movimentos.

A mulher começa a mexer em algo ao lado da cama e falar animadamente. Diz que passei bem a noite depois do susto, que estava tudo bem, ainda em observação…

Minha cabeça dá voltas, eu não estou em casa, eu não estou… onde estou?

Ela me responde com condescendência, está no Salgado Filho, o senhor sofreu um infarto ontem na praça XV, foi trazido pelo Corpo de Bombeiros. Foi a vendedora de cachorro-quente quem lhe salvou, ela largou tudo e ficou até saber que o senhor estava fora de perigo. Uma moça linda.

Ela disse o nome?

Hum, parecia um nome saído de uma história bíblica… deixa eu ver, anotei aqui porque achei bonito demais: Samarra. Disse pro senhor não se preocupar, que vocês vão se encontrar em breve na barca.

Publicado por Elaine Resende

Escritora, amante das letras, viciada em criatividade fantasiada de texto, foto, desenho, música e escultura de argila. Um dia será boa em pelo menos uma dessas coisas, mas se diverte em seguir tentando.

6 comentários em “A última barca para Paquetá

  1. Oi, Elainezinha querida. Uma contista de força, tuas imagens e a fluidez dos teus contos são fortes. Parabéns, minha linda. Um beijo. Obrigada por compartilhar tuas lindezas. Beijos

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