Desejo começar esse texto de um jeito que me pareça que falo para uma pequena audiência, uma sala com alguns espectadores, sem pretensão de parecer detentora de um conhecimento maior. Sinto falta dos tempos em sala, daqueles momentos de interação com a classe, da partilha que se realizava nesses espaços.
E então eu diria: Olá pessoal, é muito bom ter vocês aqui nessa reunião, nessa noite quente de outono no Ceará, para debatermos ideias. É bom demais ter com quem debater ideias, às vezes meu imaginário se torna um lugar solitário e, sem outras pessoas por lá, me falta o contraditório.
Eu ouviria alguns risos da minha piada boba e, após uma pausa estratégica e um sorriso gentil, sentiria o ímpeto necessário para prosseguir. Me movendo pela sala, cabeça baixa para organizar os pensamentos, recomeçaria minha fala assim:
Essa última semana do Dia dos Namorados teve um sabor mais especial para mim que os bombons, presentes e jantares que poderia ganhar. E digo com firmeza que não foi assim apenas para mim, mas para um grupo imenso de mulheres ao redor do Brasil, quiçá do mundo, que decidiram se encontrar trajando apenas coragem e suas palavras em um livro, um escrito, um manifesto de sua independência literária.
Independência que vem sendo trabalhada e conquistada ao longo dos anos, numa luta diária por um espaço que também é nosso. Na história recente do Brasil, questão de 30 ou 40 anos atrás, ainda era possível encontrar mulheres que não tinham CPF (cadastro de pessoa física) em seus próprios nomes. Entre 1916 e 1962 vigorou o Código Civil Brasileiro que previa que a mulher era incapaz e totalmente dependente de um homem para ditar os rumos da sua vida. Dessa forma, a mulher só poderia trabalhar, estudar, ter uma profissão, um comércio ou uma conta no banco se fosse autorizada pelo pai ou pelo marido. Não seria a mulher uma pessoa?
Se para algumas mulheres se discutia o direito a ter um documento em seu próprio nome, para outras entretanto inexistia o direito ao registro civil, que era pago até 1997. Seja pela pobreza ou pela questão racial, muitas mulheres viviam relegadas a condições ainda mais espúrias. Trabalhadoras domésticas eram as principais vítimas de um país cujo preconceito anda sob panos quentes e termos como “agregadas” eram comuns para se referir a alguém que trabalhava dia e noite e, vez em quando, ganhava algo que lhe concedia um status de “quase da família”.
Tem apenas 106 anos que a lei deixou de legitimar o direito de o marido matar a mulher por qualquer suposição de adultério. Ele nem precisava provar, bastava ouvir rumores. E mesmo depois de revogada, precisamos de uma nova lei para nos proteger de agressões, a Lei Maria da Penha, de 2006. E temos indicadores: o Brasil é o 5º país no ranking de assassinatos de mulheres. Em 50% dos casos, a mulher é atacada por quem ela mais confia, dentro de sua casa. Na morte, somos todas iguais, no entanto as mulheres negras morrem mais. A desigualdade de gênero é o fator preponderante nos homicídios, mas o preconceito racial e desigualdade social tornam essas situações ainda mais cruéis.
Voltando às leis, foi apenas em 1988 que a Constituição Federal tornou homens e mulheres iguais. E transformou o preconceito racial em crime. Quantos de vocês que me leem hoje nasceram depois dessa data? Você sabia que antes disso havia dispositivos legais que nos tornavam diferentes perante a sociedade? Em questões de gênero, podemos não ser iguais biologicamente falando, é evidente que não somos. Mas em questões de raça, o que nos difere além do preconceito? Você, mulher, se acha menos merecedora de uma casa, de um trabalho justo e um salário digno, de ter direito à guarda dos seus filhos, de estudar o que quiser, ter uma conta bancária e investir no mercado financeiro, que um homem? E uma mulher negra é menos merecedora que uma mulher branca? Você escritora, acha que seus livros não merecem ganhar as prateleiras das livrarias, contratos editoriais que te permitam escrever como profissão e não apenas como passatempo?
Como seria o Brasil se, ao lermos as estatísticas de prêmios e publicações de livros, descobríssemos que 50% dos livros lançados e premiados no ano pertencem a escritoras? E que metade dessas publicações pertencem a escritoras negras e pardas? Nossa média atual está em cerca de 30% dos livros publicados escritos por mulheres (chute meu, depois de ler várias estatísticas de grandes editoras), e mantemos a lanterna acesa iluminando um grupo pequeno, que se repete em muitas mídias, como me lembrou uma autora querida.
Eliane Paz escreveu um artigo onde analisou a lista publicada pela Revista Veja de livros mais vendidos nos últimos 21 anos e alguns prêmios existentes. Ela chegou aos seguintes dados: dos 113 prêmios Nobel de Literatura, apenas 16 foram concedidos para mulheres, sendo 10 delas premiadas nos últimos 30 anos. O Jabuti, nosso prêmio maior da literatura brasileira, contemplou 19 autoras e 116 autores ao longo dos anos. Em ambos, representamos cerca de 15% dos contemplados. O ranking da Veja mostra que apenas 30% dos livros mais vendidos no país são escritos por mulheres. E desse percentual, a maioria avassaladora é de livros de língua estrangeira. Não creiam que para elas é mais fácil. As duas maiores potências de autoria feminina foram orientadas a não assinar seus nomes completos.
Não poderia dizer minhas palavras após ler estas da Eliane Paz:
“Essa baixa representatividade perpetua o círculo vicioso da invisibilidade literária feminina – menos publicação, menos divulgação, menos prêmios, menos leitores –, aumenta o desconhecimento sobre o que as mulheres têm a narrar, silencia suas experiências e mantém as mulheres à margem do campo literário.”
No censo brasileiro de 2019 ficou evidente que somos maioria da população (52%). Em 2019 uma estatística apontou que somos também a maioria do público leitor: 54% dos leitores se identificam com o gênero feminino. É aqui que te pergunto algo que minha amiga de coletivo me perguntou há quase um ano: quantos livros escritos por mulheres você leu nesse ano?
Antes que ideias pré-concebidas te assaltem a alma, literatura feminina não significa apenas romances com finais felizes ou poemas de amor. Somos isso também, mas somos muito mais. E me acreditem quando digo que escrever um romance com um final feliz é muito desafiador. Tente imaginar aquele par que se junta com você e abraça uma vida cheia de percalços, compreende que você é um ser imperfeito (assim como ele) e que te ama incondicionalmente. Só amor de mãe, né? Às vezes nem esse… escrevemos ficção de alto nível.
Há mulheres incríveis fazendo todo tipo de literatura. Se elas existem, por que não lemos seus livros? Por que deixamos esse espaço ser ocupado por homens em sua maioria? Você lembra quem formou seu gosto pela literatura? O meu foi formado por outra mulher, minha mãe. E ela me apresentou várias escritoras maravilhosas. E escritoras brasileiras.
Aqui no Ceará, me apresentei para aproximadamente 40 mulheres na tarde de 11 de junho de 2022 e celebramos esse momento com um registro fotográfico. Cada uma de nós teve seu tempo de fala respeitado e muitas histórias bonitas foram compartilhadas. Algumas me tocaram e reverberaram por mais tempo na memória, histórias de silenciamento e dor, de poemas incompreendidos e rasgados. Lá em São Paulo, onde essa onda começou, um tsunami de mulheres ocupou a arquibancada do Estádio do Pacaembu. Vestimos coragem e nossos livros. Tenho consciência de que somos muitas mais e, por isso, mal posso esperar pelo próximo encontro.
Para encerrar essa fala, me responda: qual autora brasileira viva você leu nos últimos seis meses? Se a sua resposta for “nenhuma”, leia novamente esse texto e perceba que você pode ajudar a mudar as estatísticas. Terminada a minha preleção, eu teria em mãos uma lista de autoras para quem quiser começar a mudança.
Quer conhecer as fontes das informações citadas nesse texto? Só vem:
https://www.prolivro.org.br/pesquisas-retratos-da-leitura/as-pesquisas-2/
https://jornal.usp.br/radio-usp/dados-do-ibge-mostram-que-54-da-populacao-brasileira-e-negra/
https://seer.dppg.cefetmg.br/index.php/VINCO/article/download/1030/987
Crédito da imagem: Foto por Cláudio Rodrigues (@claudc ) e Miguel Silva (@silva.fotografo )
“Os textos representam a visão das respectivas autoras e não expressam a opinião do Sabático Literário.”
Elaine, parabéns pelo texto. Cheio de referências que mais que comprovam o que nós, mulheres, sentimos na alma há muito tempo sobre o que é ser mulher no Brasil, com tanta desigualdade sob vários aspectos, sendo o de gênero um deles. Obrigada por partilhar conosco esse momento histórico do qual você fez parte.
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Obrigada, minha amiga! Juntas somos mais fortes. No próximo encontro estaremos todas.
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Sugerimos “Romanceiro da Inconfidência”, obra-prima de Cecília Meireles.
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Ah, Marília de Dirceu… Ouro Preto e suas histórias.
Obrigada pela contribuição! 🤗
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