Miserável mente

Daqui do alto vejo a cidade

Tão grande e tão bonita

Tão perto e tão distante 

Cheia de luzes vibrantes

Lá tem praça, tem parque e chafariz

Lá só vive gente feliz

Também quero ir lá brincar

Sentir a brisa e o cheiro do mar

Mergulhar, virar estrela, rodopiar

Minha mãe me diz que a cidade não é para mim

Que aquela gente é diferente

Que veem tudo ao contrário 

Que mentem

Decidi experimentar

Chamei meus amigos e fomos explorar

Parecia-nos um mundo de aventuras a desbravar

Íamos quase todo dia depois de estudar

Lá é tudo bonito, grandão 

Parece parque de diversão 

Mas a gente que vive lá não vê nada disso não 

Estão sempre com pressa

Nos veem e andam ainda mais depressa

Não querem brincar

Nunca sorriem para nós 

Devem ser mesmo tristes, pensei

São diferentes da gente

Os cabelos, a cor da pele e até os dentes

Lá não tem gente como a gente

Que com menos que nada

É feliz, alegre e contente 

Nós dançamos capoeira

Eles um tal de balé

Nós tocamos pandeiro

Alegria!

Sambamos na ponta do pé 

Descobri depois de um tempo

Que minha mãe tinha razão 

Aquele povo é violento, não tem coração 

Perguntei então à minha mãe: o que veem quando me olham daquele jeito esquisito? 

Veem o que suas mentes refutam

Rejeitam porque não há beleza na nossa pobreza

Que escancara o cárcere que insistem em chamar felicidade

Sozinhos, sem comunidade

Disse com a sabedoria de quem os conhecia

Entendi assim o que veem em mim

Sou a miséria que habita sua alma

Sou sua sombra, sua escuridão 

Sou sua dor

Minha presença lembra-os quem são 

Não me querem por perto 

Vivem em negação 

O que você vê quando olha pra mim?

Moleque à toa, safado, vagabundo

Pivete, preguiçoso, sujismundo 

Gosta de viver na rua, não quer nada, nem escola

Lá vem o trombadinha 

Vamos atravessar, mudar de lugar

Esse aí não tem futuro

Nunca vai ser ninguém 

Eu juro

Ouvi tudo

Senti tudo

Vi seu olhar carregado de ódio 

Acreditei em tudo

Eu sou só uma criança, você não percebe?

Que véu lhe encobre os olhos d’alma, pobre alma-alma pobre?

Não me vês? 

Sou vida, não sou coisa!

Mas não me enxergas, nem queres tentar

Desvias o olhar, o caminho, o coração 

Me negas até o pão 

Não me olhas nos olhos, não sabes que sou também alma?

Cá estou, nesta prisão 

Que é tudo o que tenho, que é meu lar: meu corpo

Quando brinco com as gotas da chuva

Quando brinco na praça que era para ser tão nossa, minha e sua

Quando corro pelas calçadas de pedras importadas

Quando mergulho na piscina-chafariz

Tudo o que quero é ser criança, tudo o que quero é ser feliz

Publicado por Elizabeth Gomes

Aprendiz e sonhadora. Humanista e feminista. Entusiasta do amor, da igualdade e da justiça social. Dona de mim e autora de minha própria história, sou tantas quantas quiser ser até o dia de não ser mais nada. Até lá, sou pura vida.

2 comentários em “Miserável mente

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