Essências

— Amiga, não entendo o porquê de querer retornar àquele lugar.

— Também estou feliz em te ver. Fique à vontade. Pego um café e te explico tudo. Mas vou logo avisando: tenho pressa. Meu voo sai esta noite. Portanto, se quiser entender minhas razões, ouça tudo em silêncio.

A amiga torceu o nariz, mas assentiu já acomodada na poltrona, pronta para rebater qualquer argumento da outra.

O intuito era a execução de matéria corriqueira. Como bem sabe, alguns dias observando hábitos de animais. Mas não foi só o que aconteceu: na volta, o carro quebrou perto de uma tribo. O guia garantiu que o local era seguro e que estaria bem assistida até que voltasse. Partiu numa caravana e prometeu voltar o mais breve possível. Não voltou.

 Na tribo, uma sociedade matriarcal, as mulheres e suas crianças me receberam bem. Os homens estavam fora: era época de caça. Falavam um dialeto incompreensível, mas entre elas uma — grávida, prestes a parir — compreendia nossa língua e me apresentou à matriarca.

A anciã, que com autoridade de rainha carregava o peso da senilidade somente no corpo, quis saber quem eu era.

Despejei uma bula de titulações. Ela ergueu a mão num gesto que me fez calar: não queria títulos, desejava a essência e eu não tive o que dizer.

Diante do embaraço, ordenou que eu cuidasse das crianças.  Despida de meus luxos, tornei-me uma imagem distorcida, reflexa do pequeno açude.

Dia a dia, tomei gosto pela preparação dos alimentos, por estar com as crianças e conviver com mulheres, de vida simples e livre de competições. Numa das manhãs, minha intérprete entrou em trabalho de parto.

Não houve ritual que lhe salvasse a vida e coube a mim cuidar dos dois órfãos recém-paridos. Três dias depois, o resgate chegou e voltei à civilização.

— Diz que vai se juntar à tribo?

— Não: não pertenço aquele povo. Vou somente resgatar a essência que lá deixei.

Quando a amiga tomou conta de si, a outra já estava no táxi, rumo ao aeroporto.

Fabiana Ballete estreou com O silêncio guardado nas horas (ed. Âncora, Lisboa, 2022),
vencedor do Prêmio Literário de Lusofonia Professor Adriano Moreira. Dentista, com
Graduação, Mestrado e Doutorado em Odontologia na USP, integra a Academia de
Letras do Brasil e a Academia Portuguesa de Letras de Trás-os-Montes.

4 comentários em “Essências

  1. Oi, Fabiana, parabéns pelo teu texto. É, esse mergulho em outras culturas, é diferente do fuso horário, que em três dias não somatizam mais; são antes uma luz piscando o resto da vida no que somos. Parabéns. Seja muito bem vinda, querida. Um beijo

    Curtir

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

%d blogueiros gostam disto: