Associação dos Atrasados Anônimos – Parte 2

Samara veio com um sorrisão feliz na minha direção. Olha, não é que simpatizei com a menina?

Saímos dali direto para um café, não podia perder a oportunidade de conhecer a fundo uma alma gêmea. Descobri durante a conversa que ela era redatora de uma revista literária superbacana. Óbvio que tinha assunto para mais uma xícara de café, dessa vez acompanhada de uma fatia de bolo de laranja fofinho. Eis que, ao olhar meu smartwatch, estávamos atrasadas de novo, juntando as bolsas e nossos apetrechos tecnológicos, vivendo uma daquelas cenas em que os palhaços se atrapalham na pressa de não deixar o fogo se espalhar pela tenda. Eu tinha um compromisso inadiável com a dentista, Samara tinha de voltar para o escritório, e assim trocamos contatos e deixamos a conversa para outro dia.

As manhãs na AATA eram sempre assim. A gente se encontrava, relembrava os problemas que chefes incompreensivos nos causavam, histórias das pessoas que não nos entendiam, e ao final, firmávamos o compromisso de não mais atrasar por uns poucos dias da semana seguinte. Ou ainda, tínhamos a opção de não atrasar em um determinado número de compromissos, caso um dia inteiro fosse demais para nossas parcas forças. A cada vez que evoluíamos – menos atrasos era igual a mais evolução – ganhávamos uma estrela nas dez possíveis. A solenidade de entrega da estrela era transmitida simultaneamente nos nossos currículos nas redes sociais. A famosa limpa-ficha.

Eu tinha conseguido sete de dez estrelas, e estava cada vez mais próxima do meu ateste padrão. Mais uma estrela no currículo e isso me permitiria voltar a atuar nos casos como advogada. Minha nova amiga, Samara, ainda tinha muito a aprender, era “duas estrelas”, prestes a ser demitida se não seguisse à risca o que a AATA ensinava. Nunca terminava a leitura de um livro no prazo para publicação na revista, o que lhe rendia a constante depreciação da nota. Enquanto a vida estava em suspensão, li alguns livros indicados por ela, e tive muito tempo para refletir e estudar sobre minha futura nova profissão.

Os atrasos vistos assim de forma isolada eram algo que pertencia à pessoa, estava no espectro do indivíduo. Eram julgados como falta de esforço, falta de comprometimento e outras coisas parecidas. Mas eu acreditava que existia muito mais por trás disso, um lugar escondido dentro de nós que ninguém naquele grupo de apoio queria acessar, por medo de enxergar a realidade. Nem mesmo nosso orientador, que nos fazia preencher formulários CCH – Comportamento Comprometido com o Horário, matrizes de forças e fraquezas para cada sucesso e fracasso, e nos estimulava a continuar marchando, sempre em frente, rumo às estrelas que brilhariam em todas as telas. Nem mesmo ele queria falar sobre essas sensações que nos cercavam.

Para mim, havia uma cidade com mais gente que rua para circular, e telas gigantes cobrindo os prédios com imagens de pessoas fazendo algo que parecia ser muito melhor do que trabalhar. Também havia a tristeza das tarefas repetitivas, de estar sempre defendendo o direito de um cliente que não queria mais estar conectado em tempo integral, e das constantes negativas de juízes que achavam necessário estar sempre disponível na rede (como alguém poderia querer se isolar do mundo? Inconcebível!).

Havia os múltiplos compromissos que tínhamos que assumir para simplesmente pagar o aluguel da nossa tiny house, um nome chique para uma casinha minúscula. O medo de ficar sem ter onde morar era um forte propulsor do movimento “saia já da cama”, mas viver com medo também impulsionava o desejo de ficar na cama. Eu tinha outros problemas a tratar, é bem verdade, eu sei. Mas por enquanto este estava sob controle.

Para me sentir mais motivada, estabeleci o propósito de ajudar Samara a ganhar estrelas. Ela me entendia e eu tinha percorrido aquele caminho com o apoio do Felipe. Um cadinho de sororidade não faz mal a ninguém. Lia os livros ao mesmo tempo que ela e compartilhávamos nossas impressões. A garota ruiva de uivo selvagem não atrasava mais seus prazos, e eu, a cacheada cor de bronze, parei de perder tempo escovando os cabelos. Melhor uma audiência no horário, do que um cabelo esvoaçando.

No dia da cerimônia de entrega da estrela, cheguei antes de todos. Recebi amigos e família na porta da AATA com um cumprimento firme, assim como me sentia. Felipe estava ao meu lado, e o sorriso que ostentava dizia: estou orgulhoso de você. Samara chegou logo em seguida, minha parceira que ajudou nos primeiros passos da nova carreira. Aliás, carreira que só consegui abraçar depois de criar uma rotina organizada. Não era tão mal assim chegar nos compromissos no horário e isso me permitiu ser advogada e escritora.

– Boa noite, pessoal! Eu sou a Fernanda e superei o atraso crônico.

Depois de aplausos emocionados e comidinhas de festa, seguimos para casa. Eu estava feliz, de fato, mas havia algo que me incomodava, um sentimento que fui compreendendo a partir das leituras com Samara. As redes eram nossa prisão. As estrelas nos remetiam aos tempos antigos, palmas para quem fez a lição toda.

Os trabalhadores estavam certos, tínhamos o direito a desconexão. Uma nova motivação se formava, e eu estava pronta para a batalha.

Publicado por Elaine Resende

Escritora, amante das letras, viciada em criatividade fantasiada de texto, foto, desenho, música e escultura de argila. Um dia será boa em pelo menos uma dessas coisas, mas se diverte em seguir tentando.

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