[PARTE I – AATA – OU COMO FUI PARAR NUM GRUPO DE APOIO PARA ATRASADOS CRÔNICOS]
– Bom dia, pessoal! Eu sou a Fernanda e sofro de atraso crônico.
A meia dúzia de participantes, além do orientador, me respondeu um bom dia desanimado. O grupo era grande, mas como o nome sugere, somos atrasados crônicos. Sempre adiantados até que chegue a hora em que estamos muito atrasados. Então você entendeu corretamente, o restante do grupo estava dolorosamente a caminho quando comecei minha apresentação.
Um arrastar de cadeiras desviou a atenção de todos, uma confusão causada pela entrada de uma mulher esbaforida com metade da maquiagem no rosto. Me olhou cúmplice enquanto tentava não tropeçar nas próprias pernas e, deixando de ser novidade, o grupeto voltou os olhos para mim.
– Me sinto feliz hoje porque atrasei apenas 6 minutos para a reunião! – aplausos ruidosos se fizeram ecoar na sala e a mulher recém-chegada, que logo se apresentaria, uivou entusiasmada.
Eu informei que foi a muito custo que consegui chegar lá, mas o orientador lembrou que a reunião começaria mais cedo se chegássemos no horário. Fiquei chocada! Que homem sem coração! Ainda assim, ele me parabenizou pelo esforço.
Pois bem, é óbvio que eu não estava ali voluntariamente. Estou nesse grupo há seis meses porque Felipe me implorou para fazê-lo. De início achei que fosse um pedido fofo, mas ele realmente insistiu que eu procurasse ajuda ou ele mesmo o faria. Segundo Felipe, eu precisava de acompanhamento permanente. Eu não pensava assim. Ao contrário, devia existir um grupo de adiantados crônicos, doentes de ansiedade que chegam duas horas antes em qualquer compromisso. E se for para viajar, chegam de véspera na estação (ou no aeroporto). Felipe seria o primeiro inscrito!
A insistência não era despropositada. Em minha vida como advogada tudo estava sempre atrasado, inclusive as audiências. Me acostumei a chegar “no laço” ou, no máximo, com trinta minutos de atraso, afinal, o que são 30 minutos em 24 horas? Não era tão ruim assim. Como toda história de sucesso tem um revés, houve um dia, um único dia, no qual as coisas saíram do controle: uma juíza pontual e mal-humorada penalizou meu cliente pelo meu jeito. E suspendeu minha inscrição no conselho de advogados até que minha ficha estivesse sem a mácula dos atrasos. Nessa ocasião, eu tinha apenas três estrelas.
Felipe não perdia a fé em mim. Apesar da minha suspensão, um mês depois estava ele lá, prontão de noivo no cartório, e eu nunca de chegar. Sempre que me ligava eu dizia que era qualquer coisa relacionada com o trânsito, a chuva, a cidade abarrotada de carros (mentira, mentira, mentira), e me atrasei de tal forma que o casamento teve que ser adiado para o último horário da fila. Entrei linda e triunfante naquela sala cinza sem ornamentos, e tive que ir para um cantinho nos fundos, pedir desculpas aos convidados pelo inconveniente e ver minha make e penteado se derreterem. As fotos estão aí para contar. Essa ainda não foi a gota d’água para Felipe.
As coisas pareciam estar melhorando para mim, mas de novo eu me atrasava. E isso durou até o fatídico dia em que chegamos no ponto em que os pedidos delicados de “não se atrase muito” se tornaram um “não aguento mais seus atrasos”. Como critério de segurança, ele começou a anotar nossos compromissos em uma agenda compartilhada.
Estava tudo certo para jantarmos num restaurante. Acessei a agenda, me aprontei rapidamente e cheguei no restaurante quase no horário marcado. Naquele dia me atrasei apenas dez minutos, uma façanha e tanto! Tudo bem que, desde que eu havia sido suspensa das minhas atividades, aquela corrida frenética casa-escritório-fórum-escritório-casa, também não existia mais. Eu tinha tempo para escovar os cabelos cacheados com calma até que ficassem bem lisos e brilhosos, pintar as unhas sem borrar, e fazer todo o preâmbulo perfume, maquiagem, roupa, com a calma de quem acordou num domingo preguiçoso. Depois desse ritual, ficar pronta era bem rapidinho.
Enquanto isso, Felipe cruzava a cidade feito um louco para me encontrar e acabou se atrasando. Bem, na verdade, ele chegou adiantado dez minutos, mas eu não sabia disso ainda. O verdadeiro critério de segurança que ele usava nas agendas era anotar que nossos compromissos começavam sempre meia hora mais cedo. Quando ele chegou eu estava possessa por um demônio, com cara de quem chupou limão, e a noite foi um inferno. Empatia? Zero. Conceito novo esse? Essa foi, de fato e de direito, a última gota d’água num copo cheio de desculpas pedidas com biquinho e risinhos sedutores.
Voltando à reunião da AATA, Samara, a moça da meia-maquiagem, falava exatamente sobre isso, empatia. E como as pessoas que nos cobravam estar a tempo em todos os lugares não sentiam empatia por pessoas como nós, que sofriam com a pontualidade e o excesso de atenção que davam ao assunto.
Depois dessa fala, parei bem na entrada da sala e fiquei aguardando o momento que ela atravessaria aquela a porta. Ela não iria embora sem ouvir minha verdade e eu tinha muito a dizer.
(Esse texto é de autoria da escritora Elaine Resende. Mais informações no insta @cria.elaineresende)