Chá de capim-santo com bolacha água e sal:
Dia quente e de ócio
Com primos-irmãos
O vento quente e empoeirado do sertão
O corpo de criança que não se cansa das brincadeiras do dia
Mas que sucumbe à dor do ventre na noite sem fim
“O que comeu? O que aconteceu?”
A avó com olhar reconfortante
E só o seu amor já é suficiente para que o amanhecer se apresse
O sol desperta com aroma perfumado de bebida viva
O chá quente e doce da folha recém-colhida no quintal
A bolacha salgada e crocante energiza
E a saliva se forma na cobiça pelas guloseimas proibidas
Para a convalescente
esperar a melhora
Que vem pelas mãos mágicas
calejadas
imprecisas mas certeiras
da avó
Nata salgada no pão sovado
Meses de espera
Tempo em que a avó aguarda e guarda
com paciência
Colherada a colherada
a nata do leite fresco diário
Que chega à porta da casa ainda no escuro da madrugada
No portão, o leiteiro com seu tonel de alumínio
Atrás dele, a igreja ainda fechada e a praça deserta
O sal e frio conservam o espesso creme
a nata mais apetitosa que pode existir
Guardada pela avó
Feita por ela
Só para mim
Para escorrer fartamente pelo pão macio
E anunciada assim que me vê chegar:
“Tem nata para você”
Sorvete de nata e goiaba
Barulho de chuva em um dia raro de folga
Vento frio corre pela casa
Balançando a rede malemolente
As horas se arrastam com preguiça
Depois do cansaço de dias
De anos
Da vida
Na xícara, o sorvete de nata e goiaba
O favorito
Sentada na rede e escutando notícias quaisquer
Só para não se sentir sozinha
O que é raro
Mas que hoje, só hoje, é bom
Na língua, o contraste entre o doce cítrico e granuloso da goiaba
e o salgado leitoso da nata
O arrepio do creme gelado potencializado pelo frio lá fora
A cortina fechada eclipsando o dia
A rede atraindo o corpo entorpecido pela farta refeição
E o sono tímido que chega devagar
Sem hora para partir
Café com cuca de banana
Uma pausa na lida
No isolamento da pandemia mundial
A casa iluminada pela limpeza recém-concluída
ou pausada
O aroma doce do bolo assando transcende a cozinha e preenche toda a casa
Toda a vizinhança
Convida as meninas que se aproximam para saber se já é hora
A música volante ancora na cozinha e dá o tom festivo de uma tarde comum
De esperança
Mesa posta para três meninas-mulheres
Cuca com as bananas maduras antes esquecidas na fruteira
Agora estrelas
A maciez rosada da polpa aquecida
A farofa doce e crocante, dourada, convida
O sabor cremoso e aveludado do recheio derrete na boca
O dulçor leve da combinação acalma o desassossego
O café fumegante e cheiroso invade as narinas
E se amalga com a cuca em combinação conciliadora
Sem disputa nem hierarquia
Em um encaixe perfeito
Canja de galinha
Mal a tarde caía e a canja quentinha descansava na mesa posta
O prato solitário sinalizava uma refeição atípica
Nutrir a nova mãe não requeria convenções
Não era jantar ainda
Mas se a bebê estava nos braços de Morfeu
não se podia esperar
o corpo exaurido da mãe sorvia a comida quente
revigorante e sem segredos
Para se refazer do desgaste da gestação
E do puerpério
E do porvir
Era a comida de outra mãe
Agora avó
Só ela conhecia esse mundo no qual a nova mãe embarcou
Ela sabia o que precisava ser feito
E lançava seu olhar de cumplicidade
Enquanto a nova mãe resguardava o corpo
e a alma
na fluidez da refeição
e da vida
Macarrão al dente com molho a escolher
Somos forasteiras
Aprendendo a viver longe das nossas raízes
E dos nossos
Procurando formas de viver
E de amar a cidade
Os cabelos molhados
Os corpos cansados
Depois de nadar na cidade seca
O jantar quente e saboroso nos espera
Feito por quem a gente nem conhece
Mas no lugar que a gente elegeu
como preferido
A massa al dente de toda quinta-feira
A escolha dos molhos e combinações
“O meu ficou bom”
“O seu tá melhor”
“Semana que vem quero igual ao seu”
Mãe e crianças cansadas rumam para casa
À espera da próxima quinta
Para nadar juntas
Jantar juntas
Conviver entre si
e com a cidade candanga
Que não é nossa
Porque é de todos
Texto selecionado para a Antologia “Meu Sertão”, da Revista Projeto Auto Estima, publicado no final de Julho/22, em versão resumida.
Crédito da imagem: Foto por Karolina Grabowska em Pexels.com
“Os textos representam a visão das respectivas autoras e não expressam a opinião do Sabático Literário.”
Adoro ler seus textos… viajo nas histórias.
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Obrigada, Mariana! Esse texto é muito especial para mim porque me traz lembranças afetivas de momentos muito especiais e de diversas fases da minha vida. Beijão!
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Senti cada gostinho invadida por emoções que nos atravessam por meio das suas palavras! Parabens
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No texto que fala em puerperio, lembrei-me de você e de suas reflexões sobre esse momento tão delicado. Obrigada pelo carinho e comentário!
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Excelente, viajei nas lembranças e consegui sentir o gosto do amor, da ternura… so faltou a bananada na cama.🥰😘
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Sei que a bananada traz lembranças muito especiais para você e seus irmãos. Que bom que o texto lhe trouxe essa lembrança feliz.
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Amei as crônicas que muito me deixou saudosa!!
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Obrigada pelo carinho!
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Parabéns Lidiane!! Excelente texto! Percebemos e sentimos suas lindas memórias afetivas , tão bem representadas no seu texto.
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Sim, Carmelina. É comida com gosto de lembranças. Obrigada pelo carinho.
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Parabéns!!
Retratando a nossa vida no interior nordestino, aqui ainda existe leiteiros que chegam ao amanhecer.
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Muitas dessas passagens se deram na minha infância, em São Gonçalo. Por isso, muitas dessas lembranças entrecortadas pelas comidas têm esse cenário do interior.
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Minha Irmã.Que textos !!! Me lembrei da nossa infância e do pão sovado com nata.Era uma especialidade da nossa avó que fazia com afinco e amor.Parabens!!!!, me levou ao passado.
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Essas cenas da nossa infância dão uma saudade imensa. Que bom que se sentiu transportada para aqueles momentos.
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