Acordou acompanhada pelo Chico. Buarque. “Cotidiano”, a música com a qual despertara naquela terça-feira. Ainda deitada, visitava, por meio da melodia, o ritmo padronizado de suas escolhas; na letra, que se repetia incessantemente em seu pensamento, a estória de uma vida. Dia a dia. Ano a ano. Décadas. Definitivamente, era aquela “A música” que representava sua vida vivida. 62 anos completos. “Todo dia ela faz tudo sempre igual”. Aquela constatação a oprimiu, mais do que qualquer violência, física ou moral, outrora experimentada. Era a confirmação de sua mais absoluta passividade e falta de coragem perante cada um dos diferentes caminhos que lhe acenaram – como mulher, profissional, ser humano. À frente não haveria mais surpresas, opções, espaço. Tempo? Quanto mais? Resignava-se. Implodia-se, na verdade. Amanhecia lá fora e, dentro, ela apenas desejava que a esquecessem na cama, por um dia, uma semana, um ano, o resto de sua vida.
No banheiro, olhava-se no espelho e não se reconhecia. A imagem refletida, sentida como defletida, a atravessava cortante, debochada e provocativa. O creme dental, companheiro por décadas, tinha gosto de fel. Não compreendia porque desejava gritar. Não se situava em tempo e espaço. Não recordava o roteiro programado para o dia. Não distinguia a frieza dos azulejos e a intensidade de sua dor interna. A água vertia pela pia, gelada; e ela se derramava em lágrimas, ferventes. As mãos tremiam e as pernas fraquejavam. Sentia o sangue correr nas veias e um vento incômodo soprar pelo ventre. Os pensamentos tinham vida própria e velocidade alucinante, não se fixavam e não faziam sentido. Enlouqueci, assentiu em um lapso consciente. Encarou-se novamente, buscando-se. Por fim, a aceitação da loucura, em olhos flamejados, não trouxe qualquer estranhamento. Ao contrário, um certo regozijo, a satisfação de quem encontra um amigo de infância. Uma gargalhada movimentava-se por seu corpo, a explodir, quando o “Sr. Cotidiano” bateu à porta, cobrando-lhe o café que estava atrasado.
Vencida a tristeza matinal e reprimida a loucura privativa momentânea, espreitava uma sombria lembrança de que fora invadida, tendo-lhe sido roubado o direito a uma deliciosa gargalhada. Na cozinha, a rotina se impôs. Jornal. Leite. Café. Pão. Açúcar. Fruta. Remédio. Remédios … Lembrou-se do ditado popular de que a diferença entre o remédio e o veneno estaria na dosagem do produto. Ficou imaginando quantos comprimidos de losartana seriam suficientes para dar fim ao “Sr. Cotidiano”. Enquanto divagava, seu inconsciente sacava compulsivamente os comprimidos do blister. Ao final, eram 13 em cima da mesa, alinhados em fila de comando. A gargalhada não mais se conteve, e o som, decibéis incontáveis acima dos padrões aceitáveis para o horário, para o momento e, principalmente, para o quase “de cujus”, assustou-o. Paralisado na cadeira, com o olhar tentava ordenar por uma explicação, mas, em verdade, suplicava pelo estancamento daquela exaltação desarrazoada. Ela percebeu horror naqueles olhos incrivelmente submetidos. Quanto mais alarmado lhe parecia o “Sr. Cotidiano”, mais alto, dissonante e gostoso ela gargalhava. Provocava-o, encarava-o, e flertava com os limites da situação. Deliciava-se o torturando e experimentando um gozo absolutamente individual, íntimo e imperscrutável.
Arrefecida a ideia do homicídio e recalcado o gozo pela singela maldade imputada ao personificado cotidiano, percebeu-se sozinha no (in)cômodo. Esquadrinhou todas as tarefas do dia e resolveu que naquele dia tudo deveria ser diferente. Decretou feriado pessoal, em razão de 62º aniversário e se deitou no sofá. Feira, farmácia, trabalho, netos, banho, almoço, cachorro, unhas, o mundo externo não a subjugaria naquele dia. Uma rebeldia muito bem-vinda, ponderou, depois de anos dispondo-se ao serviço e aos cuidados dos outros. Respirou aliviada, desligou os instrumentos para o mundo externo e cerrou os olhos.
Foi acordada pelo barulho do ferrolho, às 18h47. “Sr. Cotidiano” havia chegado do trabalho, como de costume entre 18h40 e 19h. Ainda com os olhos fechados, sabia que viriam as flores – lírios brancos – acompanhadas de um beijo e a pergunta sobre o quê gostaria de jantar, para celebrar. Sabia, também, que a filha havia lembrado o pai da data e que a resposta correta, repetida mais uma vez, deveria ser “vamos pedir uma pizza, meu amor?”. Seguiu-se também a ritualística demonstração de surpresa com a chegada dos filhos e netos em torno das 20h.
Ao se deitar, percebeu que passou seu aniversário exatamente como viveu a sua vida. Sonhando, encerrada em si própria. Entregue. Alienada. Revoltada. Deitada e paralisada. Quem sabe amanhã ressuscite Bom Scott e acorde ao tom de “Highway to Hell”, ou encarne Michael Douglas em “Dias de Fúria”, e então possa dar vida externa à sua tristeza, loucura e maldade. Ou não. Talvez a companhia cotidiana de Chico Buarque não seja, assim, tão ruim. Programou o despertar para 6h20 de quarta-feira, ao som de “Cotidiano”, como de costume.
Crédito da imagem: Foto por Bianca Salgado em Pexels.com
“Os textos representam a visão das respectivas autoras e não expressam a opinião do Sabático Literário.”
Que texto! Maravilhoso! Um embate ferrenho e muito bem contado com o “cotidiano”.
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Muito bom. Parabéns pelo olhar crítico sobre o cotidiano.
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Querida Adriana, uma delícia de exercício de autoconhecimento. Você caminha na escrita, sabendo onde quer chegar. Um beijo
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Quantas verdades ínfimas num só texto. Parabéns!!
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Senti nostalgia, senti pena, senti dor e muitas reflexões sobre o que fazer da/com a vida e o que a vida faz conosco! Como ser autor/autora da própria história e não permitir que externos determinem o presente e o futuro.
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