Deixei minha caçula em casa com o compromisso de lavar a louça gigante que estava sobre a pia desde muito cedo. Era a tarefa dela, meio indigesta, eu sei, mas ela parecia resignada. Deitada no sofá, ela tentava reunir coragem para enfrentar a pilha de pratos e travessas enquanto a cachorrinha a puxava pelo vestido para ceder à brincadeira de cabo de guerra.
Eu estava atrasada e me arrumava apressadamente para o compromisso que me aguardava. Entretanto, interrompi o que estava fazendo por alguns instantes e me sentei na ponta da cama para conversar por meio de mensagens com a filha mais velha que estava na casa do namorado desde o dia anterior. Perguntei como ela estava e a que horas chegaria. Ela me respondeu de pronto, dizendo que estava tudo bem e que chegaria em casa no inicio da noite pois ainda tinha marcado uma tarde de jogos com os amigos. Fiquei feliz por ela estar bem e por estar se distraindo após sua semana cansativa de faculdade e trabalho. Eu disse que a amava e desejei que se divertisse. Ela me respondeu com um “Eu também te amo”.
Voltei a me arrumar sem muita atenção com o que vestiria. Mas com o requisito de que teria que ser simples e que denotasse esperança. E fé de que a vida não termina aqui… Não sei se a cor de uma roupa conseguiria denotar tudo isso. Mas não me sentia confortável em vestir preto no velório de um adolescente. Seria muito estranho. Com o pensamento sob uma nuvem de tristeza, apesar de estar tudo bem com minhas “pequenas”, saí para ver uma despedida de mãe e filho.
Não posso dizer que imagino a dor que minha colega de trabalho estava sentindo pela partida de seu filho único. Não, eu não consigo nem imaginar. Acredito que deva ser uma dor que transcende qualquer definição ou explicação. A dor dela me causou uma profunda tristeza desde o momento em que soube que seu filhinho havia partido. Como mães, inevitavelmente acabamos pensando o que faríamos se fôssemos nós a passar por aquilo tudo. A identificação é imediata e profunda. O que eu diria a ela quando a visse e sentisse seu pranto? Não havia nada que eu dissesse que pudesse amenizar seu luto. Ofereci meu abraço e meu carinho. A ela peço desculpas por ser tão pequena e tão pouco poder fazer. Sou mãe e sou humana, falível, limitada e pequena frente aos mistérios e dores desse mundo.
Precisei sair mais cedo do velório e não vi o sepultamento. Despedi-me dos conhecidos e, já quase na saída, conversei um pouco com outra colega que há muito tempo não encontrava. Ela me disse que estava tudo bem com sua família e falou das conquistas recentes dos seus dois filhos. Um deles está estudando medicina e o outro formado e pós-graduado. Tão orgulhosa estava aquela mãe! E solidária nessa corrente de outras mães em volta da mãe enlutada. Fiquei feliz pelas conquistas dos filhos dela.
O outro compromisso que me fez sair mais cedo do velório foi com uma de minhas enteadas. Ela estava voltando de um retiro religioso que fazia parte de sua preparação para a crisma. A escola tinha organizado uma recepção surpresa dos familiares para com os crismandos. Eu participei da pequena comitiva dela, junto aos seus pais. Esperamos por volta de uma hora até que os crismandos chegassem do retiro. Nesse tempo, vi o desfilar de pais, irmãos e avós esperando por seus adolescentes, conduzindo flores, presentes e cartazes. Era uma festa, sem dúvida. Festa de cores alegres, de risadas, de cânticos religiosos e de palavras de esperança e fé. Via-se o quanto os pais estavam sedentos por receber suas crias das quais estiveram sem comunicação durante todo um final de semana. Juntei-me a esse coro de saudação, de comemoração da vida e recebi minha enteada com muita alegria. Feliz pela felicidade dela. Ali, eu era uma coadjuvante: a madrasta. Mas como mãe, estava ali com o mesmo sentimento uníssono de saudação aos jovens que retornavam de uma experiência espiritual.
Mas, no fundo, meu coração de mãe estava dividido. Meus sentimentos oscilavam como um pêndulo desbalanceado. Eu acabara de presenciar a dor pungente de uma mãe que perdera o filho e que nitidamente ansiava por algum entendimento para aquela avalanche que a havia atingido. Praticamente ao mesmo tempo, eu vira o regozijo de outra mãe orgulhosa e que comemorava com toda legitimidade as conquistas dos seus filhos. Estava, ainda, entre as mães coloridas e risonhas da escola que festejavam a chegada de seus jovens crismandos e, ao mesmo tempo, eu refletia sobre a minha própria condição particular de mãe divorciada, o que muito impactava na vivência da minha própria maternidade. Eu estava em meio àquela turba festiva mas havia acabado de presenciar um clamor de lamento e dor em um cemitério há minutos dali. E, por incrível que pareça, em cada um daqueles lugares e situações, eu me senti igualmente parte desse corpo único da maternidade. Eu identifico a dor e a alegria de todas essas mães. E vivencio ambos os sentimentos com a mesma legitimidade, entendendo que não há incoerência alguma nessa identificação quase que simultânea com a dor e com a alegria. Permito-me chorar pela dor compartilhada com a mãe que lutou e não alcançou a saúde do seu filho. E me permito sorrir ao ver minha enteada feliz, retornando de um retiro, recebendo abraços, presentes e aconchego.
Na volta para casa, uma olhada no celular para ver as últimas mensagens que haviam sido negligenciadas pelos eventos (e sentimentos) das últimas horas. Lá, aguardavam resposta uns recados da minha mãe, combinando detalhes da semana vindoura de consultas médicas de rotina dela e do meu pai, para as quais minha participação seria necessária. Estava ali outra faceta da maternidade dela e minha, com uma recente troca de papéis. A filha cuidando da mãe. A mãe cuidada pela filha.
Em tudo isso, sinto a teia invisível da maternidade unindo-me, de certa forma, a todas essas mulheres, em menor ou maior grau. Certamente, nem todas as mães se sentem da mesma forma frente a situações como essas. E não há mal algum se elas sentem de outro jeito. Cada uma conduz às costas sua carga, às vezes leve e com asas que as fazem voar, às vezes pesada que dificulta a navegação por esse rio que é a maternidade. Fluido, dinâmico, caudaloso ou plácido, mas sempre a permear a nossa existência inteira.
Crédito da imagem: Foto por Irina Iriser em Pexels.com
“Os textos representam a visão das respectivas autoras e não expressam a opinião do Sabático Literário.”
Emocionante, como é a vida, para os que resolvem vivê-la ! Parabéns !
CurtirCurtido por 1 pessoa
Cheia de altos e baixos, ne Cleo? Obg pela leitura!
CurtirCurtir
Lidy vc fez uma leitura própria de uma mãe que sempre prática a empatia da vivência da maternidade de outras mães … Diante da Dor e do Amor …
CurtirCurtido por 1 pessoa
É verdade, Regina. Empatia tem tudo a ver com esse texto. Obrigada pela leitura atenta e palavras carinhosas.
CurtirCurtir
Como mãe e mulher, senti a dor e a alegria de cada momento vivido através da leitura. Sem palavras ,simplesmente um sentimento tomou conta de meu corpo e de minha alma.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Que lindo, Lucy! Obrigada por tanto carinho.
CurtirCurtir
Lid, quantos aprendizados e sentimentos em apenas um dia. Múltiplas reflexões e situações que ocupam um antagonismo, mas em algum momento se cruzam, mas seguem seu caminho. Dor e alegria ilustram seus cenários mas em todos existe o Amor. Seja na presença, no reencontro ou na despedida. E assim a vida apresenta seus ensinamentos. Não sou mãe, mas consegui sentir u pouquinho um parte do que isso pode significar. Muito obrigada por compartilhar tudo isso!
CurtirCurtido por 1 pessoa
Esse dia foi todo de reflexão mesmo, Karina. Pois foi permeado de muitas mostras do que é ser mãe e de como uma mãe pode se sentir parte desse todo que é a maternidade. Muito obrigada pela leitura e comentário. Abraço!
CurtirCurtir