Era escritora. Ofício difícil, que carrega muita dor.
Para escrever, pensava principalmente no passado. Os abandonos que sofrera, a saudade da família, os relacionamentos que não foram para frente… toda a sorte de angústias, desprazeres e frustrações.
Era um dia frio de maio, um domingo daqueles entediantes, arrastados. Foi para a frente do computador com sua xícara de café e pensou: preciso reverter esse quadro.
Queria escrever textos mais animados, motivantes. Xô tristeza!
Mas nossa, como é difícil mudar o quadro quando se tem tendência a depressão.
Abriu então seu word e disse a si mesma: a primeira coisa que vier a minha cabeça vai ser colocada no papel.
Havia acabado de receber um e-mail da revista na qual trabalhava cobrando urgência. Sua coluna já estava atrasada, e bem atrasada.
Era uma baita crise de inspiração.
Até que…
***
Era como se estivesse nas nuvens. Aquele beijo representou exatamente o que ela imaginava por anos.
Eduardo era melhor amigo de uma amiga dela. Tinha os olhos claros, o cabelo castanho, e uma linda voz. Alice era apaixonada por ele há anos. Chegou a ter outro namorado, mas nunca o esqueceu.
Ele martelava em seu pensamento. Martelava, martelava. Às vezes, inclusive, nos sonhos. Quando isso acontecia, Alice acordava assustada, com medo. Não queria que ninguém soubesse do seu segredo.
Segredo tão bem guardado, que nem sua melhor amiga sabia. Ninguém sabia. Alice não queria admitir nem pra si mesma.
Mas naquela noite, quando todos dançavam na festa, algo surpreendente aconteceu. Eduardo, que nunca lhe havia dado a menor bola, de repente começou a olhar pra ela de modo estranho, diferente. Tímida como era, Alice ficou encabulada. Mas ele foi se aproximando, aproximando. E enquanto isso começou a tocar uma música do Los Hermanos: “De onde vem a calma, daquele cara…”
E um beijo aconteceu. Um beijo de amor.
***
Olhando para o arquivo em branco, Alice lembrava-se apenas daquele beijo, e daquela noite inesquecível.
Como já podemos imaginar, aquilo que julgou amor não teve prosseguimento. Foi apenas mais um momento nesta longa vida líquida…
Um momento que marcou tanto, tanto.
Dessa vez, não pensou duas vezes.
Precisava vomitar aquilo.
O prazo estava apertado, precisava entregar a coluna. Com o coração aos pulos, lembrou-se daquela música tão especial, e escreveu.
“De onde vem a calma, daquele cara? Tá se exibindo pra solidão”.
E ali, naquele domingo preguiçoso, acabou escrevendo…
apenas mais um texto infeliz.
Crédito da imagem: Foto por Ketut Subiyanto em Pexels.com
“Os textos representam a visão das respectivas autoras e não expressam a opinião do Sabático Literário.”
Carol, vc traz um texto gostoso de se ler, com movimento com sequência, aguça a curiosidade de sempre tentar saber “E depois????”. Traz a realidade humana da vulnerabilidade, dos conflitos internos, das dificuldades…um ser humano em toda sua essência de beleza e dor. Parabéns!
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Obrigada Karina! Muito bom receber retornos como esse!
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