Uma lista para chamar de minha

Sou a mulher das listas. Tenho lista para tudo: a lista de ideias para textos, a lista de livros para ler, a lista dos livros que emprestei e para quem emprestei, dos filmes para assistir, dos lugares para conhecer… Essas listas não me cobram uma ação imediata, ficam ali à mão esperando o prazeroso momento de serem consultadas para, a partir delas, nascer uma viagem ou uma nova história para contar. Mas tem também as listas de tarefas e compromissos. E é sobre elas que preciso falar.

Tenho a lista semanal e diária das tarefas pessoais (o que inclui a vida doméstica e financeira, o planejamento de estudos, os afazeres de mãe, o meu autocuidado e o cuidado com os meus, etc) e a lista pessoal de resoluções a médio e longo prazo também. No trabalho, são várias: a lista de tarefas da semana, a lista diária, a lista de ideias para implementar, a de assuntos para estudar, a de pautas possíveis para a próxima reunião e tantas outras mais… As pessoas que convivem comigo mais de perto sabem da existência das listas e de como minha vida, de certa forma, gira em torno delas. Minha caçula sempre aparece dizendo assim: “Mãe, põe tal coisa na sua lista” ou “Mãe, tem como colocar no topo da sua lista esse meu pedido?”. No trabalho, é muito comum alguém chegar com uma demanda para a qual respondo: “Já estava na minha lista. Vai chegar a vez”. Essa semana um colega de trabalho soltou uma risada depois que falei isso, o que me fez refletir que talvez eu falasse essa frase mais do que imaginava ou, ainda, que talvez o que vai para a lista esteja ficando desacreditado, como se o fato de colocar na lista signifique que talvez demore a ser resolvido… 

De tantas listas, ultimamente tenho andado para lá e para cá com três caderninhos a tiracolo. Sim, três. Poderiam ser menos e mais bem organizados, de forma que apenas um fosse necessário? Talvez. Mas, por enquanto, são três. Meu marido, que também é meu colega de trabalho, me pergunta: “Por que todo dia você leva e traz esses caderninhos?”  Porque tudo o que eu acho que preciso fazer está lá e porque preciso estar sempre com eles para anotar as coisas que vão surgindo e aproveitar o tempo disponível (que é escasso) para ir matando as coisas da lista. 

 “Acho que preciso fazer…” 

“Ir matando as coisas da lista…” 

Já tive algumas listas no celular. Mas de uns tempos para cá, voltei-me para as listas no papel mesmo, vendo o desenhar da minha letra me cobrando resoluções. Às vezes me pego olhando as listas anteriores e as tantas coisas que já fiz e que, por terem sido realizadas, transformaram, de alguma forma, minha vida. Para o bem ou para o mal. Absorto-me nostalgicamente admirando o caminho percorrido, orgulhosa da minha trajetória, refletindo o que poderia ter sido diferente mas que não foi.  

Foi do jeito que foi e pronto. 

Dizem que se pode conhecer alguém pelo seu lixo. Eu diria que se pode conhecer alguém muito mais pelas suas listas ou até pela falta delas. As do passado, com os itens prazerosamente riscados por terem sido realizados, bem como pelas presentes e futuras, com seu clamor silencioso pelas urgências da vida adulta. Seu DNA mais honesto está na lista. 

Sempre fui uma pessoa de muitos afazeres em praticamente todas as fases da vida. Fazia curso técnico, estudava espanhol e, ao mesmo tempo, estudava por conta própria para o vestibular. Fazia faculdade, curso técnico, inglês e estagiava. Já fui universitária, estagiária, esposa e mãe, com pouco mais de 20 anos. Para em seguida ser trabalhadora, concurseira, pós-graduanda, dona de casa e mãe de crianças pequenas. Tudo ao mesmo tempo, junto e misturado, almejando conquistas, achando que esse era o único caminho: me virar em mil para exercer tantos papéis que eu própria me impunha. E como conseguir dar conta de tudo sem planejamento?  Por isso as listas. 

“Dar conta de tudo…” 

De uns tempos para cá, contudo, estou vendo o fenômeno enigmático das listas crescendo assustadoramente rápido. Estão aumentando em progressão geométrica. E minha capacidade resolutiva nem de longe faz cócegas nesse monstrinho taciturno que dorme na minha cabeceira, tão perto e sorrateiro. Estou quase vendo essas listas me engolirem de uma vez por todas, como uma folha de papel gigante que me envolve em uma grande bola de papel amassado e se joga no incinerador. Ou nunca vi antes esse fenômeno das listas cujos itens se reproduzem como coelhos ou já aconteceu antes e eu é que não me dei conta porque era mais jovem e tinha mais energia ou mais ilusão na minha capacidade de resolver problemas. O “x” da questão é que essa situação tem me inquietado profundamente e me deixado a incômoda sensação de que estou nadando, exausta, para morrer na praia. 

“Mais ilusão na minha capacidade de resolver problemas…” 

O fato é que já tentei resolver essa questão de algumas formas. Já fiz a lista semanal no domingo para não perder tempo de execução na segunda-feira, já me dispus a delegar parte das coisas possíveis e para as quais eu tenha alguma rede de apoio, já tentei ser mais rápida nas resoluções e simplesmente já cortei coisas que reavaliei como menos importantes. Mas tudo se mostrou paliativo e a lista permanece crescendo sem parar.

Já busquei as causas desse fenômeno das listas medusas, aquelas que quando cortamos uma cabeça várias outras nascem a partir do corte. Tentei entender o porquê de estar tão sobrecarregada, crendo que, caso descobrisse essa pólvora, pudesse debelar esse incêndio que consome meus dias. Será que foi a pandemia? A mudança de casa? O novo casamento? Os pets que adotei? A condição de saúde dos meus pais? O momento profissional de tantas demandas e responsabilidades? A situação do país? Acho que nenhuma dessas causas pode receber a sentença condenatória da culpa. Parece que todas essas coisas se deram as mãos e decidiram, em conjunto, tomar meu tempo de assalto, como uma gangue sedenta por fazer meu ócio de refém para nunca mais liberá-lo… Mas, no fundo, não são as coisas (as listas e obrigações) que me comandam. Sou eu a senhora do meu destino. Essa constatação libertadora, contudo, carrega consigo o peso de que só eu, e ninguém mais, conseguirá fazer algo por mim e pela almejada leveza dos meus dias.   

“Sou eu a senhora do meu destino” 

Já faz décadas que perdi a ilusão de que daria conta de tudo e de que conseguiria ter um planejamento que refletisse a realidade das incertezas da vida. Quem consegue pegar o dia de amanhã pela mão? Quanto tempo eu tenho para viver? Vou gastá-lo todo nesse latejar inclemente de listas e resoluções sem fim? E se amanhã fosse meu último dia, qual seria meu legado para os que amo?  

A vida é tão preciosa e de duração tão incerta que não posso me dar ao luxo de gastá-la apenas com coisas ordinárias que me consomem e que, egoisticamente, não deixam espaço para as coisas extraordinárias reivindicarem sua vez. Leia-se ordinário como algo comum e rotineiro e não como algo depreciativo.

Preciso também das coisas extraordinárias e encantadoramente simples. Do café da tarde sem pressa com o bolo quentinho saído do forno. Do contemplar a lua e as estrelas e sentir a brisa do vento que balança as folhas. De ir ao cinema no meio da semana. De bater papo com a Bia até tarde sem pensar nas coisas da lista que tinham que dormir resolvidas. De dar um passeio com minha cachorrinha e na volta parar para tomar um sorvete. De levar meus pais para passear. De viajar romanticamente com meu marido um fim de semana inteiro. De dormir uma tarde inteira sem despertador. De fazer um trabalho voluntário que ajude alguém ou as tantas causas que julgo importantes e me emocionam. De visitar meus sobrinhos e afilhados. De me encontrar com minhas amigas sempre que precisar de colo e de um ombro para chorar. De estar disponível para apoiar os que amo quando estiverem precisando de mim. De estudar um assunto de trabalho (ou não) com profundidade. De escrever. De aprender a cantar. De assistir animes com a Bel. De implementar ideias novas no trabalho. De fazer diferença de verdade na vida profissional dos meus colegas. De ensinar a alguém (ou alguns) o pouco que aprendi… Porque todo mundo tem o que ensinar e o que aprender… 

É impressão minha ou acabo de criar uma nova lista? Definitivamente a culpa não é das listas. Sou eu que as inflo desprevenidamente e não observo, na construção delas, o que é verdadeiramente importante e coerente com o que acredito. Impressiona-me que aos 40 e poucos anos ainda estou aqui nesse conflito sobre o que eu vivo e faço e sobre o que eu verdadeiramente almejo.

Viver resolvendo problemas aleatórios ininterruptamente se assemelha mais a um barco à deriva sem farol. Posso estar extremamente empenhada em remar e, ainda assim, não conseguirei chegar na praia paradisíaca com a qual sonhei.

Lá vem de novo o equilíbrio mostrando sua importância na condução da vida diária.

Sem ele, como mataremos os leões diários sem o oásis das pequenas grandes coisas extraordinárias?

 Sei que ainda que ninguém faça por mim a maioria das coisas da vida prática (seguirão aparecendo na lista para serem resolvidas e riscadas depois), eu preciso focar naquelas que darão verdadeiramente sentido a minha vida. E prazer. E vontade de realizar tanto o ordinário (ocupando seu devido espaço) como o extraordinário (raro – ou nem tanto – mas sempre especial). 

Enfim, viva as listas. Absolvo-as! 

Eu não sou delas. Elas é que são minhas. 


Crédito da imagem:  Foto por Bich Tran em Pexels.com

Os textos representam a visão das respectivas autoras e não expressam a opinião do Sabático Literário.”

4 comentários em “Uma lista para chamar de minha

  1. Lidi, que texto fantástico! Maravilhoso! Contemporâneo! As listas são reais e metáforas da aceleração da vida atual! Tantas coisas pra fazer em tão pouco tempo. São muitas vidas a serem vividas dentro de uma só. São muitos papéis a serem desempenhado num só corpo e mente. É cansativo pensar em tudo a ser feito, é vc exaustivo realizar, é desesperador pensar em tudo que está pendente. Aproveita e inclua meditação na sua lista. E boa sorte! Grande beijo.

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    1. Obrigada, Karina! Estou sempre nessa busca pelo equilíbrio que, as vezes, parece de distanciar ainda mais da minha rotina… Adorei a dica da meditação. Abraco!

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  2. Lidianne, seus textos são encantadores e envolventes, a cada parágrafo surge um depoimento que nos identificamos. Consegue descrever os detalhes do dia a dia de forma simples e empolgante, relatando com detalhes fatos da vida moderna que muitas vezes se perdem no stress diário, passando despercebidos ou ficando para o final da lista.

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    1. Obrigada, Andrea! A identificação de quem me lê com os textos, ainda que em uma pequena parte, e, ainda mais, a reflexão que posso vir a proporcionar são presentes valiosos para mim.

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