UM CAFÉ E UM ANSIOLÍTICO, PELO AMOR DE DEUS AGORA.

Cinco da tarde.

Faltam apenas trinta minutos para terminar o expediente. Mas o número de declarações para fazer ainda é enorme. Período de imposto de renda é intenso, não dá para negar trabalho.

Lembro-me da roupa que esqueci na máquina de lavar quando saí de casa. Terei que bater de novo. E também que tenho que colocar o lixo para fora, e tirar o resto de comida velha da geladeira. Há dias que só janto comida pedida pelo aplicativo.

Penso que deveria ter tirado a hora de almoço para correr na academia, mas cadê a disposição? Engoli a comida em apenas 20 minutos e preferi voltar para o batente. Devo ter alguma espécie de vício em trabalho”.

Vejo minhas unhas.

Um horror.

O vermelho está corroído e gritando por uma acetona. Tentarei tirar em casa antes de dormir se o cansaço me der uma chance.

Sem tempo para salão.

Sem tempo para atividade física.

Sem tempo para mim.

O relógio bate cinco e meia em um piscar de olhos. “Meu Deus, quanto tempo perdi perdida no enrosco do meu próprio pensamento”!

Acho que farei 30 minutos a mais para compensar….

Passam-se 15.

Desisto.

Minhas mãos tremem. Sinal daquilo que a médica já me avisou, mas insisto em negar. “Imagina se eu teria algum problema psicológico”!

Pego meu blazer velho e corro para o ponto do ônibus. Depois de perder uns dois por simplesmente ser ignorada pelos motoristas (afê maria), consigo um, daqueles bem cheios. Tento encontrar um espaço minimamente confortável, mas tá difícil.

Suo.

Limpo o suor que escorre pelo rosto com a camisa. Verão do Rio de Janeiro nem à noite dá trégua.

Meu coração acelera. As mãos movimentam-se novamente sem controle. Lembro-me da médica. Sinto medo. Será que aquilo é verdade? Vou entrar para a geração dos tarjas pretas?

O celular toca. Tenho vontade de gritar. Meu Deus, por que não me mandam zap?!

Atendo.

Meu cachorro fugiu pelo corredor e os vizinhos estão revoltados. Que merda! Na correria, devo ter esquecido a porta destrancada…

Trabalho, lixo, roupa, comida, cachorro, minha vida, quem sou eu, até quando isso dura… Trabalho, lixo, roupa, comida, cachorro, minha vida, quem sou eu, até quando isso dura…

… meu cérebro está em looping.

Passo do ponto. Desço correndo, já em plena crise daquilo que persisto em negar.

***

De repente, me vejo sentada na mesa de um boteco. Nem sei como fui parar ali. Uma garçonete velha e cansada me atende. Aparenta ser uns 10 anos mais velha que eu. Tem seios fartos, espalhados por um sutiã apertado, e um decote grande. Me perco prestando atenção em suas linhas. Ela pergunta aborrecida.

– O que você quer?

Respondo desanimada, já no limite das minhas forças.

– Um café…

((… um café e um ansiolítico, pelo amor de Deus mulher!!))


Crédito da imagem: Foto por Ahmed em Pexels.com

Os textos representam a visão das respectivas autoras e não expressam a opinião do Sabático Literário.”

Publicado por Carol Pessôa

Jornalista, escritora e ex-atriz. Autora do livro À Beira da Vida, Salto para o Desconhecido e Amor e outras Histórias: contos para aquecer o coração.

3 comentários em “UM CAFÉ E UM ANSIOLÍTICO, PELO AMOR DE DEUS AGORA.

  1. Gostei muito do seu texto! Essa rotina em looping também me gerou um texto aqui no Sabatico (“Diariamente”). Essa sobrecarga mental das obrigações práticas mescladas com os pensamentos e inquietações é uma realidade de muitas mulheres! Seu texto dá perfeitamente essa sensação do desequilíbrios que essa rotina impõe! Parabens!

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  2. Carol, fantástico! Uma forma simples e sincera de relatar essa vida loka de cada dia que a gente nega afirmando que tá tudo bem. Mas não está! Seguimos tentando e negando. Seu texto gera um sentimento de repetição, exastão, frustração, desequilíbrio e luta! Permite um longo e maravilhoso debate.

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