Acostumou-se a ser competitiva desde criança. Nas aulas de jazz que fazia ainda bem pequena, a professora sempre dava uma sapatilha de louça para a aluna que tivesse se destacado mais. Quase toda a semana, era ela quem ganhava. E sentia-se orgulhosa. Uma sensação de que seu esforço era visto, reconhecido. E enfim, era admirada, amada, invejada.
Aquilo se tornou uma espécie de vício.
Já eram 3 anos de aulas. O ciclo básico acabara. Mas ela quis continuar. E foi ficando, ficando…
E continuava a ganhar a sapatilha, quase sempre. Até que um dia, em um pequeno vacilo, uma distração dentro de casa, ela a quebrou.
Que
brou
em
pe-da-ci-nhos
E aquilo a abalou como se fosse a perda de um ente querido. Sua mãe a consolava, e dizia: “filha, foi só uma sapatilha”. A professora arruma outra.
Mas para ela isso não era só um objeto. Era como fosse seu coração.
Par
tido
A mãe não conseguia alcançar tamanha compreensão. Mas sentiu que havia algo errado. Resolveu tirar a menina das aulas. Aquilo não estava mais fazendo bem. Talvez ela precisasse ver outras coisas. Percebia que a vida de Alice girava em torno daquilo: esperar pela aula, dançar até a exaustão, ganhar a sapatilha, e sentir-se completa. Esperar pela aula, dançar até a exaustão, ganhar a sapatilha, e sentir-se completa. Esperar pela aula, dançar até a exaustão, ganhar a sapatilha, e sentir-se…
Completa?
(será que isso era “realmente real”)
A notícia da saída das aulas não foi fácil. Mas Alice, resiliente e forte como era, uma verdadeira vencedora, enfrentou. E venceu.
Aprendeu inglês, natação, patins, e até capoeira!
Mas carregou aquilo por toda a sua vida. Aquela busca obsessiva pela sapatilha. E o arrependimento por tê-la quebrada. Uma estranha sensação de ser imperfeita, incapaz de cuidar direito de sua própria sapatilha, de suas próprias vitórias. E assim foi por toda sua vida. Sempre que alcançava algo que parecia bom, ela temia. E pensava: será que eu vou dar conta? Ou acabo quebrando minha alegria em pedacinhos de novo?
Era seu inconsciente falando. Mas ela não era capaz de compreender. E de o fato, o que sempre terminava fazendo, era autossabotando suas próprias vitórias, e sim, por atitudes dela mesma. Tudo se tornava no fim uma grande sapatilha quebrada.
Foi assim com seu casamento, sua promoção na agência de publicidade, seu mestrado que ficou pela me/tade.
E hoje, depois de um ano de terapia, Alice já consegue se perceber. E escreve até sobre si mesma em terceira pessoa. Compreende enfim, que apesar dos dissabores da vida, teve mesmo uma parcela de responsabilidade em seus fracassos. E que tudo começou em uma busca insana pela perfeição. Que ela aprendeu, duramente, depois de tanto tempo e tanta reflexão, que não existe.
“Então foi isso? Trinta e cinco anos para descobrir que busquei algo que não existe?”
Pega então sua agenda de anotações para o ano seguinte, 2022. Rasga a página das metas, dos boletos, dos planejamentos, das promessas. E escreve: ser feliz.
Sim! Agora ela está pronta. Que venha o novo ano!
(((E que EU, Alice, possa dançar errado, nadar de costas, cair de patins de bunda e até dar um soco de boxe na capoeira. Porque sim, eu estou puta, com minha vida, minhas escolhas, meu país, e até que uma porrada cairia bem. Um soco na obsessão, na tristeza, na revolta. E um abraço no recomeço!)))
Crédito da Imagem: Foto por Anna Tis em Pexels.com
“Os textos representam a visão das respectivas autoras e não expressam a opinião do Sabático Literário.”
Simplesmente fantástico
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Obrigada querida!
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