MEU REENCONTRO COM RENATO RUSSO

Por: Elaine Resende

Durante anos trabalhei apenas para o jornal e a rádio AM, subindo e descendo com a equipe de trabalho e os visitantes. Gente fina esse pessoal! Até o dia em que eu percebi uma movimentação estranha, uma gente bem jovem, muito ruidosa, inquieta. Foi a primeira vez na vida que ouvi a zoeira que eles chamavam de rock and roll. Não era o som do Roberto e Erasmo, Little Richard, Elvis ou do Chuck Berry. Esses eu conhecia, não sou ultrapassado. Era um som barulhento que ecoava na minha cabine de 2×2 e fazia as partes metálicas reverberarem. Tremia tudo!

Era isso, estava feito: chegou ao prédio a mais nova atração de Niterói e adjacências, a primeira rádio FM da cidade, a Maldita 94,9 Fluminense FM.

Vai ser passageiro, essas coisas ruins não se criam, eu pensava a cada novo dia de trabalho. Como um prédio que recebia tanta gente importante ficaria com todo aquele povo baderneiro circulando? Tive certeza de que Sr. Alberto Torres ia se cansar daquele movimento e botar todo mundo para correr.

Sou tão antigo aqui que mereço placa de patrimônio. Estou aqui desde a fundação do jornal, sabe? Lembro bem dos plantões, os jornalistas chegando e saindo apressados com suas máquinas fotográficas e blocos de notas para caçar matéria na rua. Tempo das joaninhas da polícia, da rádio AM e da foto em preto e branco. Tudo muito bacana!

Eu tenho orgulho de dizer que em meus mais de 40 anos de dedicação ao trabalho transportei pessoas realmente importantes. Vi grandes homens nesses dois metros quadrados. Acompanhei os primeiros passos de muitos políticos. Donos de empresa negociando seu espaço nas páginas do jornal e nos anúncios da rádio, as mulheres da High Society niteroiense, prefeitos e vereadores, e até mesmo um presidente da república. Sabe por que me orgulho disso? Porque todos eles, sem exceção, elogiaram minha elegância discreta, minha aparência de simplicidade e imponência.

Ainda hoje me envaideço daquelas senhoras de unhas bem tratadas tocando em meus botões. Até me arrepio, olha só! Meu parceiro de trabalho, bem mais humilde que eu, carrega de um tudo nas costas. O coitado nunca recebeu uma visita ilustre, muito diferente de mim.

Qual não foi minha surpresa no dia que escutei Sr. Alberto Torres comentar com um dos diretores que estava gostando daquela turba. Eles não vão embora. Como assim eles não vão embora? Aquela rapaziada que ocupou os dois últimos andares do prédio não vai embora? Perfeito! Quem mais vou ter que transportar agora? Quero nem saber. Ora tinha um bando de gente que parecia ter voltado da praia, ora era a horda de cabeludos com roupa de couro. Gente que se espremia dentro daquele espaço confinado, querendo ir todo mundo junto numa viagem só. Nem tem cabimento um negócio desses. Eu alertava para a capacidade máxima permitida, com rigor, porque afinal essa era a minha função, transportar a todos com segurança. Estacava no andar e não subia ou descia enquanto não se adequassem às regras. aí uma coisa que podem falar de mim: sempre fui implacável na aplicação das regras.

Mas, sabe como é, né? Com o tempo as coisas vão se assentando, quando se vê, sente falta até do que achava ruim. E olha eu lá, acostumado com aquele sonzinho deles, com a juventude, com as altas demandas que eles faziam. E nesses horários de pico a música até que era boa, dava aquela animada no dia. E não era só isso que era bom. As vozes das locutoras eram igual veludo, uma mais macia que a outra. Ondas de FM comandadas por mulheres, e só mulher surfava naquelas ondas! Negócio inédito! Eita lasqueira! Quando elas trocavam de turno e entravam no meu cubículo, era a minha praia, eu ouvia a melodia das sereias! Sempre com muito respeito, claro! Elas eram novinhas, mas tinham uma potência na voz que dava gosto de ouvir.

Quando se é velho as adaptações são difíceis, posso garantir. Mas quando se dá uma chance ao novo, certeza de se sentir jovem outra vez. Foi o caminho que segui. Me entreguei aos novos sons, ao rock nacional que tocava logo cedo, sabia de cor sobre o mar e onde a molecada podia ir surfar. Comecei a transportar um bocado de gente diferente, de vez em quando eles batucavam uma melodia nas paredes da cabine e eu acompanhava de leve, não queria atrapalhar. Toda aquela movimentação para o décimo andar era um barato.

Mas como tudo que é bom passa, eu estava passando do meu tempo também. Comecei a falhar no trabalho. Às vezes no início do turno eu precisava de um atendimento emergencial para dar conta do dia. Eles não me substituíam, sempre acreditei que era por conta da minha dedicação. E eu me firmava e continuava o dia. Outras vezes eles me pediam para encerrar mais cedo, o que eu fazia com tranquilidade. Era melhor que passar vergonha com o cubículo cheio de gente.

O pessoal do décimo era o mais prejudicado com as minhas ausências. Meu parceiro transportava de tudo, e o pessoal viajava com o que ele estivesse transportando. Ele também estava velho e falhando, e eu não via esforço nenhum da direção para sua substituição. Entendo que o serviço dele era importante, mas acho que era mais fácil substituir a ele do que a mim!

Naquele fim de ano, era dezembro de 1993 lembro bem, a FM tinha anunciado todos os dias por uma semana inteira a chegada de uma banda importante para a juventude, a Legião Urbana. A banda chegaria para dar uma entrevista de lançamento de um disco, eles falavam disso o tempo todo. Uma expectativa enorme. E era fim de ano, as pessoas sempre ficam animadas, compras, festas natalinas, um calor típico desse período, e eu… eu não estava nos meus melhores dias. Eu completei nesse ano meus 39 anos de serviço e meu cansaço e desgaste eram aparentes.

Quando o tão esperado dia chegou, até eu já estava ansioso com o aguardo. Me coloquei pronto para o trabalho. A primeira pessoa que chegava para o décimo andar era a menina da recepção da rádio. Ela era muito simpática, chegava cedo e subia sempre cantarolando alguma coisa, mas nesse dia ela me olhou e deu meia volta. Não entrou. Sem dizer uma palavra, abriu e fechou a porta do elevador, deu meia volta e foi embora. Que coisa mais grosseira de se fazer! Estapafúrdia, no mínimo.

E foi assim esse início de manhã, algumas pessoas passavam em frente e iam para a cabine do meu colega, me ignorando totalmente. Pensei com meus botões: que raio de comportamento estranho é esse? Será que eu fedendo? Ou isso, ou estavam me guardando para receber a Banda no meu melhor estado. Talvez fosse isso. O calor intenso e toda aquela gente suada sendo transportada, meu envelhecimento, esses fatores todos juntos, quiseram me poupar. Sempre percebi a consideração deles por mim.

Não lembrava direito da primeira vez que transportei a Legião Urbana. Mas sei que fui eu. Eles estavam em início de carreira e eram falantes, um pouco bagunceiros. Não podia imaginar que aquela rapaziada se tornaria uma referência para a juventude. Então estava lá eu, orgulhoso de poder transportá-los de novo, agora banda famosa de gravadora grande e mais de 4 discos lançados e premiados. Eles chegaram, eles chegaram!

Quando abriram a porta do elevador eu me engasguei. Travei. Renato Russo pronto para dar sua entrevista na rádio e eu sem ação. Me faltava energia para qualquer coisa. O Renato foi um dos seres humanos mais gentis que conheci em todos esses anos de serviço. Vendo a precariedade da minha condição, voltou para a recepção e decidiu por esperar até que eu fosse atendido, fez questão de subir comigo. Nunca experimentei nada parecido com essa sensação! Um ato de compaixão como esse, de um homem acostumado a lhe abrirem as portas, esperar humildemente por mim, me deixou sem palavras!

Chamaram rapidamente um especialista para me atender. Logo, dois grandalhões estavam lá me cercando de todos os lados, me apertando em pontos sensíveis em busca de uma reação. Eu estacado no lugar, imóvel como uma rocha, engasgado, travado, sombrio. Um funeral no qual só compareceu o defunto. Nesse caso: Eu!

Podia ouvir os passos apressados dos homens na recepção, sussurravam algo sobre gravidez, mas acho que não era isso, não. Parecia que uma pequena multidão se formava na rua, bradando pela anunciada entrevista do astro do rock nacional. A cada intervalo a locução ao vivo repetia que ele estava lá, faltava pouco para “uma entrevista exclusiva da Fluminense FM”. E eu simplesmente ouvia, e mais nada.

Inerte estava, inerte fiquei. Minhas forças haviam se acabado. Uma vida de dedicação para aquele trabalho, uma vida de condução dos grandes nomes da cidade, quiçá do país, para eu esmorecer quando todos aguardavam seu grande ídolo.

Se eu fosse um Samurai teria dado um fim aquele suplício. Os minutos seguintes foram os piores da minha carreira. Uma ligação entre as recepções e tudo estava resolvido: Renato e Dado não deveriam mais esperar, era para subir imediatamente.

Um fim desonroso o meu. Os rapazes da Legião Urbana subiram os dez andares de escada. Por meus alto-falantes, pelas paredes ocas da minha casa de máquinas, eu ecoava a felicidade de quem os recepcionava. Queria que fosse da minha cabine que eles saíssem para receber aqueles aplausos calorosos.

Bem mais tarde naquele dia substituíram uma peça do meu motor que havia quebrado e voltei a funcionar. Recebi de portas abertas, a pantográfica e a de madeira, um Renato Russo desconfiado, me olhando de lado. Queria muito tê-lo deixado seguro de que não ficaria travado entre dois andares, mas tudo que consegui expressar foi um som que parecia um gemido de dor.

Ele se apoiou na barra do fundo da cabine e bateu na minha parede de carvalho antigo como um amigo que compreende nossas limitações e disse: “Só a Flu FM para fazer isso com a gente!”.


PS: Renato Russo visitou a Rádio Fluminense FM entre o final de 1993 e início de 1994, no lançamento do disco O Descobrimento do Brasil. Em julho de 1994 a Rádio Fluminense FM encerrou suas atividades, dando lugar a Rádio Jovem Pan de São Paulo. Há 25 anos, em 11 de outubro de 1996, Renato Russo faleceu, deixando uma legião de fãs órfãos da sua poesia urbana.


Crédito da Imagem: https://adnews.com.br/renato-russo-conheca-o-acervo-do-cantor-que-vai-inspirar-minisserie/

Os textos representam a visão das respectivas autoras e não expressam a opinião do Sabático Literário.”

Publicado por Elaine Resende

Escritora, amante das letras, viciada em criatividade fantasiada de texto, foto, desenho, música e escultura de argila. Um dia será boa em pelo menos uma dessas coisas, mas se diverte em seguir tentando.

9 comentários em “MEU REENCONTRO COM RENATO RUSSO

  1. Elaine Cristina! Que história gostosa de ler! Nessa época, eu e minha irmã amávamos (e ainda amamos) a Legião. O Descobrimento do Brasil está na ponta das nossas línguas e dentro dos corações até hoje. E adorei o ponto de vista do narrador. Parabéns!

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  2. Um conto que deixa março, pela história, pela forma que foi contada, pelos detalhes, as interlocuções e pelo personagem principalmente e narrador que se revela sua identidade somente no final para surpreender ao leitor. E que surpresa. Uma história real que virou conto. Um conto sobre uma história real. E que delícia de história. Vivi cada sentimento do personagem, cada alegria e decepção, em cada relato uma emoção. Excelente!!!!

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  3. Oi, Elaine. Parabéns pelo texto cheio de registros bem detalhados. Esse texto/comentário é uma ótima crônica daqueles idos 90. Parabéns
    pela memória e pela bela homenagem à música, ao Legião e ao nosso saudoso e brilhante Renato Russo.. Um beijo, minha querida.

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