Por: Elaine Resende
Peguei os exames na gaveta, coloquei na sacola de pano e dei uma última olhada no espelho. Tenho orgulho de parecer uma cobra que engoliu um boi. A roupa não esconde mais a pele lustrosa e o zebrado branco, a mensagem evidente de que o dia tão esperado está próximo.
Um arrepio correu pela coluna quando abri a porta e avistei o mar de tijolos cobertos de cimento e musgo. O céu cinza chumbo prenuncia sirenes e alertas da defesa civil nos alto-falantes. Fechei a porta e pensei duas vezes se deveria mesmo sair.
Mamãe falou para não atrasar. Perder a consulta me levaria de novo para o fim da fila, não daria tempo. Busquei o chapéu e o casaco, abri a porta e inspirei uma dose extra de coragem. A descida íngreme descortinava o vale carioca.
Os passos calculados na pedra sabão, um bom dia dona Maria aqui, outro bom dia para o seu José acolá, as pessoas seguindo seu ritmo em busca do pão e vinho, súplicas ao Pai Nosso diário. Benzi o corpo em busca da companhia preciosa, que avistava ao longe de braços abertos.
Cheguei ao beco escuro, nada à vista, fui passando confiante, segurando a medalha milagrosa, a cabeça baixa. Eu tenho fé, mas não ousaria encarar o mal nos olhos. Há dezenove anos dá certo, hoje não teria por que ser diferente.
E foi nesse momento que uma estrela cadente cruzou o céu e iluminou o beco. Um estampido, um grito e a chuva caiu em gotas pesadas. Minha roupa ficou molhada e os sons ficaram confusos. A chuva dessa manhã deixou um gosto metálico na boca, esfriou o corpo quente, esquentou o peito. O coração disparou e a cabeça vagueou com um zunido que não conseguia identificar.
Decidi que me sentar um pouco não seria ruim. Pode ter sido o medo, o frio ou a chuva, o peso da barriga ou o café da manhã minguado, não importa, não me sentia bem. Tenho o direito de me sentar.
Passei a mão no peito e, quando a ergui até meus olhos, o céu enevoado se fez em mim. Uma mão se estendeu para a minha e ouvi sua voz, quase um sussurro, me dizer que tudo ficaria bem.
Naquela manhã gris, meu corpo escuro estendido no beco escuro, adormeceu.
Crédito da imagem: Foto por Elaine Resende
“Os textos representam a visão dos respectivos autores e não expressam a opinião do Sabático Literário.”
Texto estonteante! Parabéns!
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Obrigada, Lidya! 💖
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Elaine, que texto tocante. E que história bem contada! Sentimos o medo, as incertezas e a coragem da personagem Consigo até ver a D. Maria passando por ela e a imagem do Cristo no céu nublado. Que riqueza de detalhes! Parabéns!
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Obrigada pelo carinho, Lidi! ♥️ a gente sabe a dureza de uma história assim, mas precisamos dar voz para elas tb.
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Quantas mulheres, também anônimas, ganharam (ou perderam) vida com esta história. Parabéns, Elaine!
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Não podemos deixá-las na invisibilidade. Obrigada, Cláudia
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