Por: Lidianne Monteiro
Disseram-lhe que ela deveria sossegar. Reforçavam quase diariamente que já era hora de se aposentar também dessa inquietude de querer alguma coisa que ela não sabia direito o que era. Mas que sabia que queria. Isso a impulsionava, ainda que passasse por represálias dos que teimavam em condená-la a viver uma vida que ela não queria que fosse sua. As vizinhas comentavam que as suas roupas não eram apropriadas para a idade, que a risada era muito espalhafatosa, que ela não sossegava em casa, que nunca a viam cuidando dos netos e mais um monte de “defeitos” que elas entendiam imperdoáveis para uma senhora de família. Os filhos não eram tão explícitos nas críticas mas se queixavam que a mãe não proporcionava os almoços domingueiros de família como as mães dos amigos faziam. Também diziam que ela deveria parar de viajar tão frequentemente porque era perigoso para alguém da idade dela. “Imagina se a senhora passa mal em uma viagem dessas?” e “Se a senhora conhecer alguém de má fé que a engane?” eram os mantras repetidos a exaustão. Ela não se detinha a remoer esses julgamentos porque há muito tempo exercitava o hábito de não se importar tanto com eles. Ela sabia que não se deixar condenar pelos julgamentos alheios requeria vigilância e prática constantes. Com relação aos filhos, entendia que tinham um zelo excessivo. Eles ainda não tinham a maturidade dela para discernir que a intensidade com que se vive, para algumas pessoas, tem mais importância do que a quantidade de anos arrastando desgostos ou indecisões.
Na véspera, recebeu o telefonema de uma amiga dos tempos do escritório. A amiga queixava-se de uma dor crônica na coluna, do minguado salário da aposentadoria e do filho mais velho que havia se divorciado e voltado a morar com ela, no quarto que ela havia transformado em ateliê de costura. Percebia na fala da amiga um tom de queixa entrecortado pela culpa por reclamar da volta do filho. “Quem pariu Mateus que balance”, a amiga dizia, justificando para si própria a acolhida a contragosto. Ouviu a amiga desatentamente. O discurso era muito parecido com os anteriores, então não precisaria se deter tanto para dar os conselhos de praxe.
O telefonema da amiga a fez sonhar consigo própria voltando para a casa da mãe após uma longa viagem. Chegava na porta carregando uma pesada mala que quase não conseguia suspender. Precisava arrastá-la. Estava exaurida mas a mãe não a deixava entrar. Tentava pela porta da frente. Dava voltas em busca de outra entrada. Todas as aberturas estavam trancadas e o movimento dentro da casa desdenhava do seu calvário. Ela não entendia o porquê. No sonho, ela era jovem mas tinha as lembranças de toda a vida que viveu até ali. Isso era confuso e a fez acordar muito angustiada, justo naquele dia. Levantou-se e se olhou no espelho. Lá estava ela com todos os sinais da idade que carregava. Não era a jovem do sonho. Sorriu e as rugas do rosto se movimentaram em comemoração. Afastou-se do espelho para se ver de corpo inteiro. As curvas estavam ali, a cicatriz da perna do acidente de carro na adolescência também. E mais a pele branca com alguns sinais de sol que ficaram de lembrança das praias aos sábados. Os cabelos grisalhos cacheados que davam a todo o conjunto um quê de brejeirice emolduravam o rosto marcado e sorridente. Gostava dessa imagem de mulher madura, apesar de só lembrar da idade que tinha quando se via no espelho. Às vezes até se assustava quando estava na rua e era surpreendida por sua imagem refletida em alguma vitrine. Pensou na menina jovem e angustiada do sonho. Dessa vez, imaginou-a sorridente, com um vestido branco de renda que dançava ao ritmo do vento e com os cabelos soltos batendo no rosto. Imaginou-a jogando a mala pesada e inconveniente ao mar, em um dia abrasador mas fresco. No movimento pendular das ondas, a mala teimava timidamente em retornar à costa. Mas o mar se mostrava persistente e apesar de permitir breves descansos com o retorno da mala a rebote de pequenas ondas, apropriou-se de vez do pacote, sem que ela precisasse empurrar vez alguma, para nunca mais devolvê-lo. Sorriu mais uma vez.
Vestiu-se para uma saída rápida para providenciar algumas poucas coisas que restavam pendentes para o jantar. Contudo, mais cedo do que o costume, a filha mais nova chegou em sua casa, arrastando pela mão a neta ainda sonolenta que não tinha acordado a tempo de ir à escola. Ela preparou um café e ofereceu um pedaço do bolo que havia sobrado da confraternização do grupo seleto, e cada vez menor, das amigas da faculdade. Contou do sonho mas a filha mal ouviu, ocupada que estava em distrair a pequena com algum vídeo no celular para poder despejar os conselhos que a levaram ali, tentando dissuadir a mãe de cometer o que seria um grande erro. “Mãe, a senhora não tem mais idade para isso”, diziam a filha e a torcida do Flamengo. Mas ela estava tão feliz que a forma ríspida com que a filha achou de lançar o apelo final nem a incomodou. Beijou-a ternamente, olhou-a bem no fundo dos olhos e disse, igual como fazia quando ela era criança e a filha estava assustada com o remédio que ela iria colocar no joelho ralado: “Confia em mim?”. A filha nada mais disse, vencida.
Despediu-se da filha e da neta e saiu à rua feliz da vida, tomando as últimas providências. Hoje não queria se ver na rua em vitrine alguma. Sentia-se como uma adolescente que voltava à escola depois das férias escolares e iria reencontrar o “paquera”. Quem sabe não seria hoje que o rapaz a pediria em namoro ou a convidaria para assistir “Love Story” no cinema? Não podia (e nem tentava) negar, era mesmo uma romântica veterana e inveterada.
À noite, na sala de estar, emoldurada pelos porta-retratos dos filhos e netos e tendo-os como testemunhas, foi pedida em casamento pela primeira vez na vida. E, como todos já esperavam, ela disse “sim”.
Crédito da imagem: https://www.papodecinema.com.br/filmes/love-story-uma-historia-de-amor/
“Os textos representam a visão dos respectivos autores e não expressam a opinião do Sabático Literário.”
Lindo texto, uma mulher que consegue ser livre independente de todos os julgamentos!
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A liberdade requer escolhas corajosas. Obrigada, Dani!
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Conto belíssimo. Me lembrou dos relatos felizes que ouvíamos de minha avó sempre que a questionávamos sobre sua juventude. Ela prontamente fechava sua bíblia usando a foto dos netos como marcador de página e começava a contar feliz, como se estivéssemos novamente em 1954 e fôssemos suas colegas de quarto no colégio São Rafael.
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Que legal, Gabi! Imagino as histórias maravilhosas que sua avó deveria contar para vocês! Às vezes a gente esquece que as pessoas idosas tiveram (e tem) uma vida pulsante e cheia de paixões e emoções. Abraco!
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Amei profundamente! Um conto tão ritmado! Próximo de muitas realidades! Sensível e emocionante.
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Que bom que gostou, Karina! Gratidão!
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Amo mulheres que não se importam com a opinião alheia.
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