ESPERANÇA

Por: Lidianne Monteiro


Dormi até acordar, sem despertador, sem hora marcada.

Só que não programar o despertador é só uma farsa que faço comigo mesma.

Porque, na prática, deixo a janela e a cortina abertas para a luz do sol invadir o quarto e me despertar. Banho-me com essa luz, energizando-me e completando o trabalho das horas de sono que normalmente foram insuficientes. É assim na rotina espartana da semana e na maioria dos sábados e domingos “livres”.

Mal tinha aberto os olhos e peguei o celular quase instantaneamente. Qual não foi minha surpresa ao ver que havia uma mensagem enviada na madrugada avisando do agendamento para que meu pai comparecesse a um local de vacinação para receber a segunda dose da tão preciosa e ainda rara vacina contra a COVID-19. Por um instante, meu cérebro titubeou em me responder se havíamos perdido o prazo ou não.

Felizmente não. Corri para avisá-los para que viessem para a cidade, pois estão morando há alguns quilômetros da capital e não tem carro próprio. Combinamos tudo. Como dizem os muros cinzentos da cidade: “vai dar certo”.

Meus pais agora são quase meus filhos. E digo isso com o orgulho e felicidade de que chegamos a esse ponto. Pois é sinal de que continuam aqui, compartilhando esse mundo comigo, ainda que seja um mundo caótico e desafiador.

Eu sabia que esse dia em que eles precisariam mais de mim do que eu deles chegaria. Chegou junto com a pandemia, com o medo galopante de que se infectassem e sofressem, com a necessidade de que se isolassem fisicamente em uma rotina planetária que tem achado no mundo virtual a alternativa para substituir as tantas coisas que eram feitas presencialmente.

Diferentemente daqueles que vimos nascer das nossas entranhas, os pais que viraram filhos precisarão cada vez mais de nós. Esperamos que os filhos criem asas e voem “ao infinito e além”, como diz o Buzz Lightyear ainda que estejamos com o ninho quentinho esperando as pausas dos vôos deles. Com os pais que viram filhos é diferente. Nesse caso, nosso ninho tem que ser cada vez maior e mais aconchegante para a permanência cada vez mais frequente deles.

Mudei minha programação caseira do dia para incorporar essa missão feliz e nobre de levar meu pai para receber essa dose de esperança que tem o poder de contagiar a gente que está perto e que nem vacina vai receber. Apressei-me na cozinha e adaptei o prato de chef que eu estava me programando para fazer desde a véspera. Enquanto cozinhava o pensamento ia longe, borbulhava junto com a água das panelas e se dissipava no ar em meio aos aromas da cozinha, bailava no ar junto com as músicas da playlist preferida. Por que não cozinho mais? Tive mais ideias mirabolantes nesses minutinhos à beira do fogão do que na semana inteira ao computador…

A saída para buscar meus pais não foi sem contratempos. Filha que cortou o dedo na lavagem apressada da louça: corre, pega o curativo, diz que não precisa de ponto, mesmo porque ir para hospital, nem pensar! Procura a chave do carro que descobrimos perdida na hora de sair, busca pela chave reserva que, por ser reserva, nunca é usada e logicamente está perdida também. Pega duas máscaras para cada pessoa que essa variação da cepa não está de brincadeira! Segura o gato para não sair e contaminar as patas no hall, pega o borrifador de álcool reserva que o do carro acabou, sai descalça, calça o sapato que está no hall. Ufa! Dizem que as mulheres conseguem fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Muito treino desde sempre das nossas ancestrais, né? Ou era isso ou a gente era engolida pelos dinossauros na primeira espiadela para fora da caverna.

Conseguimos pegar meus pais a tempo e com os nervos mais calmos após a saída “traumática” de casa. Minha mãe que estava sedenta por um interlocutor ao vivo que não fosse o meu pai, despejou, em minutos, várias atualizações de assuntos que foram da pandemia ao BBB, passando pela nova namorada do meu sobrinho e pela nostalgia de voltar à Fortaleza após a recente mudança para a cidade natal deles, após mais de 40 anos morando aqui.

À medida que nos aproximávamos do local da vacinação, íamos nos preparando para o momento. Recomendávamos a todos que estivessémos atentos à vacinação, à aplicação da dose, às informações que seriam prestadas, à foto que deveria ser retirada para registrar esse momento histórico, etc. Minha mãe orientando que meu pai fizesse assim ou assado. “Mãe, deixa ele tranquilo. A gente faz o que precisa fazer. Ele tem que apenas aproveitar o momento.”

Pai vacinado e todos batemos palmas! Eu sempre atenta às impressões do meu pai no pós-vacina. Ele sempre fica emocionado e eu também. Foi assim na primeira dose e na segunda.

Nesta, a primeira frase foi: “Espero que em breve todos os brasileiros possam ter esse momento”. Na primeira dose, ele disse: “Viva a Deus. Viva à Ciência. Viva aos Servidores da Saúde”. Chorei.

Missão cumprida e eu e Bia, a neta do dedo cortado, retornamos para casa. Bia, a princípio, não sabia se poderia ir com a gente nessa missão porque tinha coisas para fazer (ela sempre tem coisas a fazer, não sei a quem puxou!). Na volta, feliz em ter podido estar com os nossos velhinhos, perguntei como tinha sido o “passeio”. E ela disse: “Foi bom treinar a esperança”.


Lidianne Monteiro

Mulher, mãe, trabalhadora e especialista em tentar equilibrar todos esses pratos. Engenheira apaixonada pela precisão dos números que desenham o mundo. E pela subjetividade que permeia as relações e as pessoas. Enfim, paradoxal como se deve ser.

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