É a primeira vez que conto essa história. Nunca fui de falar sobre sentimentos, sabe? Quando eu era pequeno, meu pai reclamava que minha santa mãezinha me dava carinho demais, dizia que eu era mimado. Então segurei o choro e parei de pedir carinho a minha mãe, porque eu precisava ser um homem forte como meu pai. Ele nunca chorava.
Era domingo, eu preparava o frango do almoço quando o telefone tocou. Larguei tudo sobre a bancada de granito, muito desajeitado, e corri para atender. Eu faço isso, é verdade, de esticar a barba no rosto antes de falar alô. Minha mulher sempre se divertia com esse tique e com o alô, que ela dizia que tinha saído das profundezas da terra.
Não sou uma pessoa de pressentimentos, mas uma ligação àquela hora, coisa boa não podia ser. Estive me preparando para receber Esther por toda a semana. Cuidei das pimenteiras na sacada, contratei uma pessoa para limpar as janelas. Lembrei da alergia dela, então tirei as cortinas e mandei para a lavanderia. Também tirei o forro do sofá e aspirei toda a casa. Agora tenho janelas limpas e nenhuma privacidade. Os vizinhos acenam para mim quando chego perto da janela, detesto gente alegre a troco de nada. Balanço a cabeça pra eles, podia ser pior.
O Pereira vem todo dia e toca a campainha para saber se eu estou vivo. Aí acaba entrando para tomar um café e só vai embora quando digo que vou esticar as pernas.
Ainda bem que não sou vidente! Não era o que eu esperava e fiquei muito aliviado. É sempre isso agora, um telefonema suspeito, esses vendedores que nem me deixam pensar para responder. Ainda tem uma juventude que acha ridículo ter telefone fixo e fala apenas por essas coisas de celular. Detesto essas modernidades. Eles acham que vão ser jovens para sempre? Hahaha para eles! Os dedos deixam de ser ágeis e olhos de águia, pffff, nem se fala.
Eu era rápido demais com os números, batia os dedos na tecla da calculadora sem olhar, sem parar. Serve pra nada, isso!
Esther foi para a Irlanda explorar uma nova vida. Saiu de casa no mesmo dia que me aposentei. Foi bonita a festa de despedida na empresa, ganhei uma caneta com a data que comecei a trabalhar e a data da saída, trinta e oito anos de dedicação. Teve discurso e comes e bebes.
Esther não pôde ir, estava se preparando para a viagem. No aeroporto foi tanta gente se despedir dela… me deu um abraço e pediu desculpas por não ter ido mais cedo. Eu entendo, isso nunca foi problema. Quantos eventos eu faltei por causa do trabalho? É assim mesmo, eu disse.
O frango já estava no forno. O cheiro tomando a casa. Fazia tempo que eu não preparava uma refeição completa. Dois anos e três meses. Cozinhar só pra mim? Que nada! Muito mais econômico e limpo comer no Bar do Siqueira. A Marieta faz a comida com aquele tempero que eu adoro, mas nunca lembro o nome. Ela fala, eu esqueço. Aí acabei indo esses dias com um caderno e ela anotou a receita. É tomilho fresco.
Eu nunca entendi porque as pessoas precisam largar suas casas e estudar no exterior. Temos excelentes universidades aqui mesmo, perto de casa. Esther disse que precisava. Ela esvaziou as gavetas e foi. Conseguiu tudo sozinha, não me pediu um centavo, um pedaço do que era dela por direito, nada.
Apenas foi. Minha vida, vivida em função da sua por tantos anos, de
repente é partida por essa aventura. Um título. Um pedaço de papel. Bisonho. Que vai ser pendurado numa parede junto com todos os títulos que ela já tem. Eu pergunto, isso serve para que, no final das contas?
O alho refogado tomou conta de tudo, vou usar para temperar o feijão preto, que já cozinhou. O alho deixa tudo ainda mais cheiroso, e o tomilho fresco… como demorei tanto para descobrir? Arroz e feijão prontos, maionese na geladeira, só falta o frango. Aproveito para lavar as panelas.
Hoje o Pereira não vem, avisei a semana toda que estaria muito ocupado, que
não precisa fazer prova de vida. Mas acho que ele não vem por mim, vem por ele mesmo, e não implico mais com a campainha que toca todo dia como um relógio suíço.
Se Esther me ouvisse falar essas coisas… penso nela ralhando com esse meu jeito de expressar e não consigo ficar sério. Recomendei tanto! Falei sobre todos os sequestradores que drogam mulheres sozinhas e roubam seus órgãos, avisei que o frio pode realmente congelar a ponta dos dedos, o risco de uma nevasca…
Assisto aos especiais da Discovery. Aposentadoria não é sinônimo de desinformação. Ela me chamou para ir várias vezes, mas não quis, nem tenho
passaporte. E agora que ela volta para me ver – que arrumei a casa, fui ao barbeiro, ao dentista e ao cardiologista – sinto a dúvida e a angústia do abandono, como se a qualquer momento o telefone me desse a notícia de que surgiu outro imprevisto, não virá.
Então volto a atenção aos detalhes: frango assado, inteiro, pele crocante. Preparei o molho de manteiga com tomilho fresco, ela vai gostar. Nosso almoço de domingo, costume de quando a mãe dela ainda era viva.
E quando a campainha toca, eu abro a porta e deixo aquele menino que queria ser igual ao pai desaparecer. Com minha filha nos braços, meu coração transborda de amor. E meus olhos também.
Adorei, Elaine Cristina! A gente se sente dentro da cabeça do pai cozinheiro, com tantas lembranças, tanto capricho e tanto amor… Parabéns!
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Obrigada, Lidi! ❤️
É um punhado de amor numa refeição.
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Que almoço de domingo mais bonito, Elaine. Há beleza em cada detalhe dele por ser tão real. Obrigada!
🤍
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Ah, Beth! Quando a gente viaja nas nossas memórias de infância lembra desse carinho dos nossos pais. É bom demais! Obrigada vc! ❤️
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Mergulhei nesse pai zeloso e inquieto, prático e saudoso, que texto envolvente eu amei, gratidão por compartilhar.
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Alessandra, como é bom ler suas palavras. Gratidão! ❤️
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Que texto gostoso. Senti o cheiro desse frango assado com manteiga e tomilho, a ansiedade desse pai cheio de saudades e o amor que transbordou no abraço com a filha. Lindo demais! Eliane, gosto demais da tua escrita.
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Amiga, muito obrigada pelo teu carinho e sensibilidade com o meu texto. Fico feliz de não caber em mim! ❤️
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