“Todas as lutas são, essencialmente, lutas por poder.”
Dana perde o braço que foi engolido pela parede no último retorno para casa. Precisa explicar para a polícia que não foi Kevin que a machucou. E então, inicia o relato de quando os eventos mais estranhos transformaram sua vida.
O ano é 1976. Ela é uma escritora que acaba de se mudar com seu marido Kevin para uma nova casa. Durante a arrumação dos livros na sala de estar sente uma vertigem e, ao abrir os olhos, está em uma floresta, onde um pequeno menino ruivo se afoga num rio. Dana não pensa duas vezes: se lança nas águas para salvar a criança. Alguns segundos depois, está na sala de sua casa novamente, molhada e suja de lama, e a criança não está mais com ela.
Assustada com a experiência inexplicável, antes que pudesse se recuperar completamente, Dana sente outra vertigem e agora está num quarto com uma cortina em chamas. Ela descobre que o menino cresceu, se chama Rufus, e que toda vez que sua vida se encontra em perigo, ela é convocada ao seu tempo para salvá-lo, um laço que atravessa os limites conhecidos da física. O tempo não é um continuum linear e único para Dana, que está agora no longínquo ano de 1815.
A vida do casal possui as facilidades permitidas para aquela geração: geladeira, carro, TV, máquina de escrever, uma cama confortável. Quando recebe o chamado de Rufus, ela volta a uma era em que a escravidão existe e sua pele escura passa a ditar as regras de como se comportar num século diferente, num estado americano escravagista. As facilidades agora estão reservadas às pessoas brancas. Para Dana resta dormir numa esteira no chão, comer as piores comidas ou a sobra da refeição da casa grande e trabalhar muito.
O tempo não passa para Dana e Rufus na mesma velocidade. A cada chamado, um Rufus mais velho se revela, enquanto em seu próprio tempo, para Dana, passaram-se apenas alguns segundos, minutos ou, quando muito, dias. Seria ela uma bruxa poderosa? Uma fada que concede vida longa ao seu protegido? Uma mutante? Ou uma Deusa africana?
“Eu era a pior guardiã possível que ele podia ter, uma negra para cuidar dele em uma sociedade que via os negros como sub-humanos, uma mulher para cuidar dele em uma sociedade que via as mulheres como eternas incapazes. Eu teria que fazer tudo o que pudesse para cuidar de mim mesma.” (p. 110)
Dana não controla seu poder, em minha visão simplista, talvez porque não acredite nele. Suas viagens ocorrem quando Rufus está em perigo e, por isso, imagina que o poder seja dele. Vive para protegê-lo em nome de uma linhagem familiar que culmina em sua própria existência. Então voltamos à clássica questão de viagem no tempo, ou o paradoxo do avô: se você mata um antepassado, sua existência é apagada?
O livro mostra como era a vida das pessoas sequestradas na África e levadas a trabalhar forçosamente nos Estados Unidos; o tratamento precário, desigual e desumano que recebiam. Nenhum direito era concedido e, ainda que houvesse, nenhum direito era respeitado. Pessoas livres que cruzassem um território onde a escravização ainda imperava poderiam facilmente ser sequestradas e escravizadas novamente. Uma realidade triste para a qual a maioria das pessoas negras e seus descendentes ainda aguarda por reparação, pelo pedido de perdão, pelo reconhecimento de um erro brutal.
“Estranhamente, pareciam gostar dele, desdenhá-lo e temê-lo, tudo ao mesmo tempo. Isso me confundia, porque eu também sentia a mesma mistura de sentimentos por ele. Achava que meus sentimentos eram complicados, porque ele e eu tínhamos uma relação muito esquisita. Mas, na realidade, a escravidão de qualquer tipo criava relacionamentos estranhos. O feitor me despertava emoções menos conflituosas e mais simples quando aparecia brevemente. Pensando bem, era tarefa do feitor ser detestado e temido, enquanto o senhor mantinha as mãos limpas.” (p. 368)
Octavia diz que decidiu escrever sobre o poder porque era algo que ela tinha muito pouco. Criou dessa forma narrativas poderosíssimas! Em Kindred, nos leva a experenciar como era ser mulher negra em dois tempos distintos, sofrer preconceito e ser menosprezada. Ela deu voz ao que muitos não querem ouvir nos tempos atuais. Além disso, para os leitores de seus livros e ensaios, é fácil identificar o quanto de Dana é a própria Octavia. Há trechos do livro em que sua personagem é criticada pelas outras pessoas negras, que a veem como alguém que não tem orgulho de sua origem. Uma preta-branca, que lê livros e fala com mais educação que o povo que a mantem como escrava. Entendo sua dor.
Ressalvo apenas que é preciso ler o livro com olhos de 1976, antes de tudo. Sua personagem é casada com um homem branco que, a princípio, não expõe nenhum preconceito de forma direta ou consciente, mas que o faz sem perceber. Dana se empenha em dar a ele o letramento racial mínimo necessário, corrige seus erros, mostra a ele a implicação do que é ser uma pessoa negra e de como a vida dele é privilegiada em relação aos demais. Me parece que Kevin se esforça em aprender, mas deixo isso para você responder.
O livro é incrível do início ao fim, mantem o suspense e a ação na medida certa. Não à toa, virou série e estreou nos EUA em dezembro de 2022, ainda sem data prevista no Brasil. Mas recomendo mesmo a leitura. Deixe-se ser tragado por esse vórtice vertiginoso de viagem no tempo.
Querida Elaine, que maravilha seu ensaio sobre este livro. Fiquei com muita vontade de le-lo. Parabéns! Obrigada pela indicação. Beijo
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Jovina, tenho certeza que você vai adorar. Octavia Butler foi uma mulher genial, e esse livro é uma pérola! Bjs, obrigada pela leitura!
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Muito bom, Elaine! Parece-me uma história muito interessante e cheia de recados importantes. Seu olhar sensível nos dá uma boa medida do que esperar da obra. Parabéns!
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Obrigada, Lidi! Octavia é a mãe do afrofuturismo, uma vertente da ficção especulativa voltada para a ancestralidade africana. Essa é uma de suas histórias mais emblemáticas. Vale a pena! Obrigada pelo carinho ❤️
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