Você conhece a expressão dorama? São as séries ou novelas de drama orientais. Seus espectadores no Brasil recebem o nome de dorameiros. Em 2022 me tornei uma dorameira: assinei canal exclusivo de doramas, me inscrevi em newsletters especializadas no assunto, assisti mais de 12 novelas, troquei indicações com as amigas e comecei a estudar coreano.
Sobre o último, sendo muito realista, apesar de estar no módulo 12 de coreano no Duolingo, sei menos que o básico. Identifico alguns anglicismos na escrita, conheço as letras, sei dizer que sou do Brasil, obrigada e desculpa. O resto, um bando de palavras soltas que não fazem muito sentido sozinhas.
Há 3 anos começamos a planejar, a pedido do filho mais velho, uma viagem para o Japão. Desde que entrei no universo dos doramas, os planos de viagem passaram a incluir China e Coréia do Sul no circuito. Quero conhecer os prédios e ruas que vejo nas telas, o marido quer provar as delícias culinárias e os meninos querem ir a todos os parques que existem. Ainda falta o essencial para uma viagem longa como essas: o capital! Aos poucos vamos resolver esse “detalhe”.
Além de aprender um novo idioma e da perspectiva de uma viagem legal, os doramas coreanos me trouxeram algo mais. Há ali muito material de inspiração para aplicar nos meus próprios textos. Então, quando não estou distraída demais suspirando de amor, observo as novelas pelas lentes da sua construção: arcos longos, personagens com muitas camadas, múltiplos plots, ganchos bem-feitos e muito subtexto para dar pano pra manga. Adoro quando eles fazem personagens se reencontrarem após longos anos de separação.
Assisti esses dias a Something in the rain. Nessa série, se juntasse todas as falas dos personagens durante a temporada completa, caberia em um único episódio. Longos silêncios e pausas para reflexão, com muito espaço para a imaginação de cada um completar de acordo com suas vivências. E, claro, encontros sob chuva. Ouvi dizer que as cenas mais bonitas nos filmes românticos são os beijos apaixonados em noite de chuva. Tenho certeza de que você lembrou de uma cena dessas agora. Na trama, a protagonista tem 35 anos e começa a namorar o irmão da melhor amiga, mais jovem 4 anos. Até então, tudo bem, eu penso, você pensaria também. Mas há várias questões que fazem com que a família dela não aceite a união: eles se conhecem desde a infância, o rapaz não fez faculdade, vem de um lar desestruturado etc. e tal. De maneira nenhuma ele é um bad boy. É um trabalhador do universo dos games (novas profissões que os mais antigos nem sempre compreendem), bonzinho, colega exemplar, amigo para todas as horas.
No entanto, é a idade o maior tabu que precisam superar. Há uma cena que me chamou atenção e motivou essa escrita. Durante um acampamento, o mocinho apresenta a namorada para os casais amigos, todos mais jovens que ela. Na tradição oriental de respeito aos mais velhos, ela é tratada conforme
sua idade, o que significa que a fazem se sentir como os idosos para quem cedemos o lugar no transporte público. À noite, as mulheres se reúnem para dormir juntas e conversar. A protagonista ocupa o lugar de quem venceu os obstáculos na carreira, a irmã mais velha, como elas chamam. As mais jovens começam a relatar suas dificuldades e decepções e esperam os conselhos. Uma delas conta que voltou para a faculdade por falta de emprego, outra que está de saída do quarto emprego, pois apesar de toda a formação que possui, só serve para levar café e escrever atas de reunião.
Guardadas as proporções culturais de cada quinhão do mundo, exageros dramatúrgicos à parte, as séries são fonte de discussão de padrões comportamentais tóxicos na sociedade. Nos romances, em particular, as discussões giram em torno dos comportamentos inadequados dos homens em relação às mulheres. Há muito assédio moral e sexual nos ambientes de trabalho, há uma forte hierarquia onde o homem manda e a mulher obedece, o silenciamento constante dos desejos e vocações femininas e, ainda, uma imposição por casamento e maternidade que recai sobre elas. Sempre. É sobre seus ombros que se ampara a construção dessa sociedade.
Essas discussões sobre nosso papel no mercado de trabalho (ou dentro de uma relação) consistem no ponto alto da trama para mim. São como naquele filme “A Origem”, onde sonhos são plantados para fazer com que os sonhadores mudem de opinião. Na novela, são as ideias de respeito às mulheres e valorização do feminino que estão num nível ora de tema principal, ora secundário, mas me fascinam quando surgem em momentos como essa cena do acampamento, apenas como uma semente esperando o tempo certo para aflorar.
Realizando a justa adaptação transcultural, temos um Brasil com menos tabus em relação à idade ou mesmo ao sexo fora de uma relação de casamento. No entanto, há outros pontos de contato com essa narrativa: mulheres preteridas em vagas por conta da maternidade, assédio moral e sexual gerando constrangimentos no ambiente de trabalho, e pessoas que ainda acreditam que servir o café ou arrumar a mesa do almoço é atividade exclusivamente feminina.
Participei uma vez de um esquete num treinamento de trabalho onde deveria desempenhar o papel da chefe ruim. Encarnei a pior versão que pude imaginar: a cada vez que uma colega tentava expressar opinião, eu a interrompia solicitando um café para o cliente, pegar pastas no arquivo ou fazer qualquer serviço desconectado do ponto central da reunião. Um tratamento tosco.
Os instrutores não entenderam minha atuação.
A bem da verdade, parece que não entendi a solicitação. Devia ser uma chefe ruim para o cliente e fui ruim para os colegas. Pedi desculpas, me sentindo uma tonta por não entender o que foi designado. No fundo, minha vontade era dizer que não importava qual fosse o cargo, tratar mal o cliente externo ou interno me tornaria a pior das colegas. Pegar o café ou a pasta do arquivo não é tarefa a ser desmerecida. É a falta de respeito que incomoda.
Não vou falar aqui sobre as doenças emocionais oriundas de se estar num ambiente de trabalho ou num relacionamento amoroso opressor. Ambos são difíceis e merecem atenção especializada. Parafraseando Frida Kahlo, se não for bom, não permaneça por muito tempo. Se couber denúncia, procure apoio, há profissionais e canais aptos para ouvir e tratar essas questões. Reúna provas, peça ajuda as amigas e amigos, mas não se isole com sua dor.
Precisamos tirar o bode da sala, o grito da garganta, o poder de quem não o merece. Pense que, quando falamos de trabalho, estamos falando de 1/3 dos nossos dias e que trabalharemos por aproximadamente 30 anos de nossas vidas. Como você espera passar esse tempo? Para mim, é bom que seja num lugar onde eu queira estar, onde me sinta respeitada e acolhida, onde desempenhar uma atividade seja motivo de satisfação. Nem sempre foi assim, por isso hoje sou grata por trabalhar num ambiente saudável, com colegas que respeito e admiro, e onde me sinto igualmente respeitada.
Por fim, sobre o romance, devo dizer que amo suas muitas facetas. Algumas mais fictícias e irreais, outras reflexivas e profundas, amores possíveis para uma sociedade que muda. Os doramas mostram que não devemos aceitar qualquer situação ou relação apenas para cumprir com os requisitos de uma “to do list”. Sei que é difícil mandar no coração, mas uma coisa que descobri na vida e nos romances é, se for para ter um relacionamento amoroso, escolha alguém que te respeita mesmo quando discordar de sua opinião; e que te faça sorrir, seja porque lembrou da sua música favorita, ou …(complete aqui com o que te faz sorrir).
Para mim, basta que ele apareça onde estou.
Elaine, seu texto é primoroso, em todos os sentidos. É clara a segurança de autora que sabe o que quer dizer e diz bem. Brilhante a conexão de ideias. Lembrei a modalidade da corrida de bastão, onde os participantes passam o bastão para outro corredor. Você faz isso no teu roteiro. E o tema, importantíssimo! Parabéns, minha querida. Um beijo!
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Jovina, além do dom da escrita, você foi agraciada com a nobreza da alma. Teu comentário ao meu texto é gentil e profundo, o que me deixa feliz demais. Gratidão, minha querida!
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Eu estou sem palavras …eu te admiro muito…como uma novata em Doramas,tem sempre palavras,gestos que nele me indentifico… obrigada amiga❤️
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Também te admiro, minha amiga! Às vezes me vejo naqueles papéis nos doramas, na luta daquelas mulheres contra o preconceito, assédios e outras formas de violência. Também me vejo na alegria e no amor que elas sentem. Acho que é sobre isso, esse nosso gostar dos doramas. Sororidade! Bjs e obrigada 😘
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Elaine, tua escrita é fluida, lincada, clara e profunda. Parabéns, minha amiga. Delícia de texto e profundidade de reflexões.
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Obrigada, Claudinha! Às vezes eu penso e repenso uma ideia muitas vezes, e fico na dúvida se consegui expressar o que estava querendo a todo custo sair de mim. É muito bom ler suas palavras e saber que te alcancei com as minhas. ❤️
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