Encaminhou-se até o oratório e procurou a imagem de São José. Tinha pressa e a minguada luz do candeeiro não ajudava. Achou-o por detrás de outras imagens, com a cabeça unida ao corpo por uma cola espessa e amarelada. O conserto feito por ela própria não tinha ficado muito bom. Mas ela não podia pedir por chuva sem levá-lo consigo. Nem o santo nem Deus a ouviriam.
Colocou-o em uma sacola de pano e tateou até a cama para pegar o terço de pedrinhas brancas pendurado na cabeceira. As vizinhas já estavam no alpendre, na frente da casa, esperando por ela. A madrugada findava e logo o sol avançaria iluminando um céu terrivelmente limpo, replicando a imagem aterradora que se sucedia dia após dia, sem nuvem escura que pudesse anunciar sinal de uma gota sequer.
Era dia de São José e não havia mais nada a fazer a não ser rezar para que chovesse. Ninguém suportaria mais um inverno como o do ano anterior, tão escasso de água e de esperança. Saíram em um grupo pequeno formado por mulheres e algumas crianças sonolentas. Seguiram silenciosamente pelo caminho de terra. Os rostos sérios nem se olhavam, como se temessem encontrar no outro a desesperança que se contrapunha ao fato de estarem ali, clamando por um milagre.
Pequena tomou a frente do grupo. Era o lugar que lhe cabia. As alpercatas de couro levantavam poeira e os pés ficavam cobertos por uma fina camada de terra vermelha e muito seca. As veredas abertas para abreviar as distâncias pareciam rasgos em meio à vegetação seca e retorcida. Aos poucos o Sítio Almas ia ficando para trás.
Pequena pensou em adiantar a reza e balbuciou um começo de terço. As outras a seguiram e ela se calou para mergulhar em suas próprias lembranças, enquanto as companheiras embalavam a reza. Viu-se jovem, atravessando aquele mesmo rio para chegar até a outra margem onde ficava a gruta de oração. Sua mãe levava mudas de roupa em uma trouxa sobre a cabeça para que pudessem rezar com roupas secas após a travessia. Naquela época, o clamor era para que a chuva cessasse e interrompesse as inundações que tudo alcançava e destruía. Hoje, como que amaldiçoados pela inconstância de não saber o que pedir, o pranto era para que chovesse pelo amor de Deus.
Pequena refez o mesmo caminho de outrora, desta vez com os pés secos. Do outro lado do que fora um rio, a gruta esperava pela comitiva sonâmbula. Pequena fez as outras se ajuntarem e solenemente retirou a imagem de São José da sacola. Em suas mãos, um São José sem cabeça segurava um menino Jesus gordo e corado. A cabeça do santo não estava na sacola e as mulheres se entreolharam assustadas, com medo de que o incidente fosse um mau presságio. O filho de Pequena apressou-se para tentar localizar a cabeça que deveria ter caído no caminho, ele imaginou. Há alguns metros da gruta, suas mãos miúdas e ágeis colheram a cabeça que jazia no chão e estava misteriosamente úmida, como se tivesse sido molhada por um rio invisível que só existia no passado de Pequena. A criança entregou a cabeça do santo à mãe e foi a primeira a perceber que algumas gotas começavam a cair sobre si. Inicialmente, eram espaçadas e faziam-na duvidar de seus sentidos. Depois, irromperam grossas e incontestáveis. As lágrimas de Pequena, então, se juntaram à chuva e ao rio saudoso que, há muito tempo, esperava por ela.
Viajei no cenário. Da aridez ao cheiro de terra molhada.
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Que bom, Claudia! Fico feliz!
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Ah, Lidi, que coisa linda a fé diante da adversidade. A esperança renovada a cada estação, símbolo da força do povo, tão bem retratada por você. Parabéns, amiga
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Lembrei da infância, dos sertões por onde passei.
Lembrei de livros que li, que falavam de terra rachada e de pés também.
Lembrei do turismo que fiz pelo sertão para mostrar aos meus filhos uma realidade por eles não vivida.
Lembrei das estátuas gigantes que temos no Ceará, mas também da distancia entre a fé e as políticas públicas efetivas.
Lembrei da música Súplica Cearense e também dos comentários feitos sobre ela em um livro escrito pelo Dr. Alexandre José de Barros Leal Saraiva.
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Que lindo, Samuel! Também lembrei da música Súplica Cearense, ao terminar o conto. Obrigada pela leitura atenta e comentário.
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Lidiane querida, que belo conto. Quanto sentimento, que primorosa escrita. Obrigada pelo presente. Parabéns! Um beijo,
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Obrigada, Jovina!
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Retrata, com muita riqueza de detalhes, a fé do povo nordestino clamando por chuva, para que possa amenizar o sofrimento e trazer esperanças para um ano melhor. Viva a chuva, viva a água, viva a comida na mesa e viva a vida que renasce na paisagem árida do sertão nordestino.
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