A Despedida

É cedo, muito cedo. Ele levanta da cama devagar e os estalos no joelho lembram que a decadência chega para todos. Debaixo do chuveiro a água fria se confunde com lágrimas teimosas que insistem em lhe visitar nos últimos meses.

No quarto, sobre a cama de lençol esticado, a roupa preta preferida. Enquanto calça sua velha bota com fivela prateada, ele pensa que há tempos sente o peso dos anos e a depressão que veio de brinde.

Cabelo engomado, bigode alinhado e ele está pronto. Como de costume, tranca a porta da cozinha, chama por seu cachorro e pega seu cajado de cedro, presente do seu velho amigo índio.

Na rua segue devagar, mantendo a elegância que lhe resta, sabendo que a casa de Estela é logo na próxima esquina. Sente um leve tremor e o coração acelera. “Mas que diabos! Se acalme”, resmunga batendo de leve no peito. Estela, impossível esquecer da moça de cabelos cacheados, desarrumados pelo vento quando ela saía gastando as pernas pela cidade.

Ele sabe que Estela não mora mais lá, mesmo assim as lembranças traiçoeiras aparecem para brincar com ele. Estela sorri da janela e logo faz sinal para que ele espere. Ele para e se apoia em seu cajado.  sente o cheiro de mato verde quando ela se aproxima sorrindo. O sorriso de Estela é como banho de rio no verão. Ela não fala nada e ele sente os lábios dela tocando os seus. Ele fecha os olhos e prende a respiração. Quer guardar para sempre o perfume e o gosto dela.

O grito de caça de um gavião real risca o céu e o silêncio. Ele abre os olhos e se vê só, como de costume. Pisca os olhos e se volta para a janela da casa, que agora está fechada. Balança a cabeça e lamenta: “Seu velho tonto!”.

Naquela manhã a cidade está silenciosa e o calor promete ser intenso. “Esta cidade está só poeira”, reclama entre os dentes, justificando as pestanas úmidas. Para ele o tempo de chorar já passou. Apoia-se firme em seu cajado e segue seu caminho. Hoje ele precisa de paz e não dessas lembranças tolas que atravessam o tempo para lhe atormentar.

Publicado por ceupassos

Escrevo e rabisco contos, crônicas e poemas. Faço colagens digitais e tudo mais que minha alma deseja e o corpo permite.

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