A caixinha de som na traseira da moto vibrava ao solo da guitarra. Parecia uma súplica, que chovesse naquela hora, aplacando o sol escaldante do Ceará, e lavasse sua alma empoeirada da estrada, que acumulava as traças da falta de contato, da distância que aquela missão havia imposto aos dois. Ele havia voltado apenas por ela. Por eles.
Ainda estava de uniforme quando saiu do aeroporto com a lua e o sol no céu. Precisava passar em casa antes de seguir para encontrá-la. Jogou uma jaqueta sobre a farda e foi direto para casa. Esperava que ela o encontrasse, que a música a fizesse, como uma Julieta em Verona, atender seu chamado. E lá estava há cinco longos minutos: Phil Collins cantando e Douglesney sentado em sua moto, as sacadas do edifício se enchendo de curiosos, e ela, onde estaria?
– l –
Haviam conversado muito ao telefone, não se tratava de uma intenção, mas uma decisão. E ela, do outro lado do Brasil, devia entender seus motivos, afinal era a razão de tudo ter chegado ao ponto que chegou. Para que os planos dessem certo, precisou negociar sua permanência na unidade. Passou noites em vigília na fronteira, cobriu turnos incansavelmente, sacrificou sua patente, ela não precisava saber.
Antes que o avião da FAB pousasse em Fortaleza naquela madrugada, fez uma oração silenciosa, uma prece ao padroeiro de sua mãe, precisaria de sua intercessão. O dia raiava em tons de roxo e laranja. Uma continência aos superiores, mochila nas mãos, tomou seu rumo.
Queria que ela estivesse em sua casa, mas apenas Caetana, herança de seu pai o aguardava. No celular nenhuma mensagem. A conversa não tinha ido na direção pretendida, mas se tem algo que aprendeu no exército foi nunca desistir. Ele não desistiria deles tão fácil assim. Tentaria ainda mais uma vez, mesmo que parecesse desesperado.
A cama desfeita no seu quarto e as partículas de poeira em suspensão trouxeram uma visão da noite em que ele a deixou. A hora em que sentiu sua respiração pesada pelo sono, retirou seu braço e se arrumou para partir com o pelotão. Era melhor que a despedida tivesse sido aquela, sem choro. Havia obstáculos a sua união, mas não para o homem que venceu a doença, não para o soldado condecorado, não para sua alma exposta e seu coração. Eles chegaram juntos até ali, naquele beijo de despedida, e estariam juntos de novo no beijo do reencontro, ele sabia, estava mais perto a cada minuto.
Preparou um café forte, foi até a garagem e tirou a capa de Caetana, uma Harley Glide década de 1970. Colocou mais algumas roupas na mochila e sua partida estava pronta. Ela saberia dele, onde quer que estivesse. Sobre a camiseta branca vestiu a jaqueta de couro. Minutos antes de sua partida uma chuva intensa fez o dia claro se fechar, assentando a poeira no chão, escorrendo pelos telhados de cerâmica da Rua dos Tabajaras. E logo se fez sol alto outra vez.
Quando parou a moto no Meireles, conectou a boombox ao celular e ligou o som. Era a música que ela gostava que ele tocasse ao violão, ela reconheceria, ele sabia. Phil Collins cantava I wish it would rain down. Ele queria que a chuva lavasse os erros do passado, que ela desse uma segunda chance ao amor deles, que Sofia o entendesse.
Dos prédios ao redor todos espreitavam das janelas, as varandas curiosas, sacadas esperançosas pelo desfecho dessa serenata moderna à luz do dia. Ele permanecia parado em sua moto, aguardando a vida mudar num salto, uma chegada, uma decisão tomada.
Aquela era a música, a hora, o local.
Nada.
No verso final da canção encarou seu destino.
– II –
Quando desligou o telefone naquela noite Sofia chorou até deixar o travesseiro empapado. Ela havia arrumado suas coisas e deixado a casa de Douglesney totalmente desalentada, pouco tempo depois que ele partiu em missão. Não havia sentido em permanecer ali se ele não estava. Ela se sentia adoentada, e a solidão potencializava sua fraqueza.
De volta a casa da prima no Meireles, precisava pensar sobre a vida e o que seria deles. Três meses separavam os dois daquela noite. Douglesney era capitão, tinha tempo de serviço para sair, começar uma vida nova. Ele havia planejado tudo: com as economias do soldo, eles comprariam a casa da Praia da Baleia em Itapipoca, aquela com o quiosque na frente que tanto gostaram quando passaram o fim de semana. Criariam ali aquele menino que crescia e os unia, uma vida de sonhos. Sofia poderia terminar sua faculdade de medicina depois que o bebê nascesse, e eles poderiam ter mais filhos quando ela quisesse. Ele tinha certeza que seriam felizes, tinha certeza de que a amava e que tudo era bênção.
Vai dar certo, ele repetia para a menina. Mas tudo parecia um pouco mais complexo. Sofia, mesmo ciente do amor de Douglesney, não tinha certeza se estava pronta. Não queria se casar, nem filhos, nem morar na Praia da Baleia, não naquele momento. Ela não queria o sonho de verão do namorado, estava sofrendo. Desejava que tudo voltasse no tempo, fossem namorados passeando na cidade de moto, curtindo a vida sem compromisso e feliz. Havia muito futuro para ser conquistado, e um filho e um casamento estavam longe de preencher os requisitos.
A prima havia chamado os pais de Sofia, que a encaravam quando ela desligou o telefone. Era uma menina de vinte anos, prodigiosa, um investimento de longo prazo que, diante dos pais, desmoronava por causa de um soldado em missão no sul do país. Não havia como dar certo.
Sofia queria ficar só é chorar. Tudo estava decidido, ele estava voltando, tinham planos, tudo daria certo. O pai argumentando com a filha que seu futuro era de glória, e ela o estava enterrando. Ela revidava com os planos que não eram seus, talvez fossem de Deus, mas ela aceitava. A mãe pedindo calma ao homem, calma à filha, tentando se acalmar também.
Os hormônios, os enjoos, a tristeza, uma menina frágil segurando o peso de uma vida em seu colo, de um mundo em seus ombros. Não tinha dinheiro, dependia dos pais. Veio para a capital estudar, ficava na casa da prima de sua mãe, a primeira a perceber os sinais. E o destino lhe deu uma rabissaca que a deixou sem chão.
Para aplacar a discussão, a mãe ofereceu um chá de camomila e um comprimido, apenas para relaxar. Quando dormiu, o pai a tomou nos braços e caminhou até o carro. Foram para Juazeiro do Norte na mesma noite, onde a menina acordou em seu quarto de adolescente. O telefone não estava lá.
– III –
Quando Phil Collins cantou o último verso e Sofia não apareceu na varanda, Douglesney encarou seu destino. Juazeiro do Norte era a terra do seu padim, seu intercessor, ele resolveria tudo pessoalmente com Sofia. Acionou o motor e, sem pressa, se afastou por entre os carros. Os acordes finais da música sufocados pelo som das buzinas e motores da avenida principal.
Adorei, Elaine! Uma história de amor que deixa a gente querendo saber o que vai acontecer. Adorei as referências ao meu Ceará. Parabéns!
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Ah, esse Ceará que me apaixona e me faz querer escrever histórias de amor 😍 Obrigada, amiga! ♥️
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Amei!!! Quero a continuação!!!!
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Amiga, obrigada pelo carinho. Quem sabe?! Kkkk ❤️
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Elaine, Adorei!!!!!
Exatamente como o sabático se propõe, um delicioso respiro na rotina.
Parabéns!
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Obrigada pela leitura, Márcio! Feliz de te ver por aqui. ♥️
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Oi, Elaine, parabéns, gosto do dinamismo da tua escrita, você nos colocou na garupa dessa moto. Em nossa frente, caminhos a percorrer. Atrás de nós, a poeira do chão quente de Juazeiro do Norte, cidade que amo, onde assumi com 19 aninhos meu primeiro trabalho por concurso, pois comecei aos 14 anos. Obrigada. Um beijo. Parabéns.
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Gratidão, Jovina! ♥️
Você sabe o quanto admiro tua escrita e receber um elogio seu dá um quentinho no coração. Como não escrever uma história de amor nessa terra do sol tão maravilhosa? As histórias nos aparecem a cada esquina. Beijos
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