Clara no Sistema

Clara não conseguia respirar dentro do ônibus lotado. Estava abafado e sua sensação era a de que o ar que entrava pela janela estava denso, pesando sobre seu corpo franzino. A máscara no rosto incomodava mas não era prudente prescindir dela se quase todos os seus companheiros de viagem já a haviam dispensado. O suor que escorria pelo rosto e caía sobre seus olhos deixava-a com vontade de chorar. Tentou pensar em amenidades, observar a paisagem da cidade e o movimento dos transeuntes de rostos sérios que enfrentavam a manhã de segunda-feira.

Lembrou-se do filho na escola. Achou-o diferente aquela manhã, queixando-se de sono e dispensando o achocolatado que ele normalmente bebia de um gole só. Titubeou se ele deveria ir mesmo à escola. Contudo, como nada mais ele apresentava além do comportamento atípico, decidiu que o levaria mesmo assim. Caso ele ficasse em casa, ela teria que faltar seu trabalho de meio-período, a faculdade e tudo o mais…

Desde que Francisco nascera, Clara arrastava um curso universitário em uma faculdade pública que lhe exigia horários de aula difíceis de conciliar com a maternidade e com o trabalho que a ajudava a manter a si e ao filho. O trabalho de meio-período foi um achado que ela tratava como uma pedra preciosa e frágil, potencialmente quebrável a menor turbulência de sua vida inconstante. Na semana anterior, havia sido alvo do comentário de uma colega de trabalho que dizia que uma mãe solteira como ela não deveria se dar ao luxo de fazer faculdade e trabalhar apenas meio-período. Constrangida, engoliu o comentário e, na primeira oportunidade, devolveu-o ao universo em um choro silencioso e solitário no banheiro da empresa. Não acreditava naquela ilógica mas recebê-la recorrentemente deixava-a desanimada.

O ônibus parou no seu ponto e, ao desembarcar, retirou a máscara e recebeu a lufada de um inesperado vento frio que parecia anunciar uma chuva-surpresa. O céu ficou nublado de repente e ela apressou-se para ganhar a corrida contra a chuva. Mal pisou na recepção da empresa, sua bolsa vibrou. Na tela do celular, o número de telefone da escola. Francisco estava realmente indisposto e já começava a apresentar uma febre que subia rápido. Preocupou-se porque ele tinha um histórico de convulsões em situações assim. Lastimou-se por não ter dado ouvidos a sua intuição e ter racionalizado a decisão da ida à escola.

 A chuva despencou forte, lavando as ruas e tangendo as pessoas para os abrigos pelo caminho. Tudo ela observava pela porta de vidro da recepção, absorta. Clara permaneceu imóvel, sem ação por alguns instantes, olhando a chuva intensa que rapidamente encharcava os colegas que chegaram depois dela. Decidiu telefonar para o pai de Francisco, saber se ele poderia pegar o filho na escola e levá-lo ao hospital que ficava no meio do caminho entre a escola e o trabalho de Clara. A ligação foi rápida, como era de costume. Ele não podia buscar Francisco nem deu outra alternativa. E desligou. Simples assim.

 Clara pediu um transporte por aplicativo. Não iria sair barato mas não lhe ocorreu outra ideia. Ao se dirigir à porta, deparou-se com a chefe que acabava de chegar e lhe lançava um olhar de quem não entendia por que Clara estava saindo em um horário em que todos estavam chegando. O motorista do transporte que Clara havia chamado chegaria em minutos. Clara apressou-se em explicar à chefe o porquê de sua saída. Gaguejou, atropelou as palavras e mal se fez entender porque ela própria estava confusa, sem nem saber se a compreensão que buscava era mesmo legítima de ser obtida. Sua chefe, contudo, fez um sinal para que Clara interrompesse o discurso. Olhou com atenção para ela e respirou lenta e profundamente, como quem incentiva que o outro faça o mesmo. Clara entendeu e fez uma pausa em seu relato trôpego. Sua chefe a abraçou e disse que tudo ficaria bem. Que fosse ao encontro do filho. Depois ela compensaria aquelas horas não trabalhadas. Apesar da aprovação confortadora da chefe, o que relampejou na mente de Clara, naquele momento, foram as palavras da  colega na semana anterior. Despediu-se e embarcou no carro.

 Clara telefonou para a escola e soube que Francisco havia sido medicado. A febre, apesar de persistente, estava mais amena. No trajeto, o motorista começou a conversar e perguntou no que atuava a empresa na qual Clara trabalhava. “É uma empresa de Tecnologia da Informação. Trabalhamos com softwares para outras empresas”. O motorista achou muito interessante e começou a falar de uma sobrinha formada nessa área. Disse que ela era executiva de uma grande empresa de TI e morava em São Paulo. Que ela sempre fora muito estudiosa e agora, aos quarenta e poucos anos, era muito bem-sucedida e palestrava Brasil afora. Disse que ela viajava muito a trabalho e a lazer. Contou que ora ela estava no exterior ora em alguma cidade turística brasileira. Depois de várias demonstrações de admiração pela carreira bem-sucedida da sobrinha, ele soltou: “Mas é solteirona. Nunca casou nem teve filhos. Com uma carreira dessas, ou ela escolhia uma coisa ou outra, né?”. “Verdade…”, Clara respondeu quase sem pensar. Mal se calou, porém, arrependeu-se imensamente da sua resposta.

 No rádio, tocava a sua canção preferida, um reggae que falava de uma longa estrada cujas curvas e dificuldades só conheciam quem nela caminhava. O ritmo gostoso trazia a tiracolo a mensagem de resiliência e esperança. Clara estava muito cansada e a música que enchia o carro não a alegrou tanto como de costume. Ainda era segunda-feira mas o cansaço do fim de semana de estudos e tarefas domésticas davam à Clara o peso de quem nunca se sentia menos que exausta. As adversidades das situações e o peso das palavras que vinha ouvindo nos últimos dias a levavam para um lugar de desconfiança sobre seu futuro e o de Francisco. O momento não podia ser pior para essa reflexão, um início de semana estranho em que ela acabava de largar o trabalho para socorrer o filho.

Clara chegou à escola e encontrou Francisco deitado em um colchonete. Seus olhinhos estavam lacrimejando e sua testa quente. Ela se pôs de joelhos para abraçá-lo e ele correspondeu com o pouquinho da disposição que lhe restava. Seu hálito adocicado pelo antitérmico a deixou enjoada e a despertou para as providências que estava ali para tomar. Pegou a mochila de Francisco e se encaminhou para pedir outro transporte rumo ao hospital. Qual não foi sua surpresa ao ver seu pai adentrando o pátio da escola e indo ao encontro deles. Ele estava de folga e ela nem lembrava. Ele também recebera uma ligação acerca da febre de Francisco pois seu número de telefone estava na ficha escolar dele. Clara achava que seu pai estava trabalhando então nem cogitou que ele poderia acudí-los.

A presença do pai deu à Clara um novo ânimo e uma sensação acolhedora de quem não está sozinha. Na verdade, desde que chegou à escola e abraçou o corpinho de Francisco, ela se lembrou disso.  

No hospital, Francisco foi atendido e tudo indicava que era mais uma virose de criança. A febre cedeu e logo ele tentou se desvencilhar do colo da mãe para brincar no mini-escorregador da sala de espera. Ao vê-lo assim, Clara se alimentou de uma esperança que o reggae não tinha sido capaz de inspirar. No celular, uma mensagem da amiga avisava que a aula da tarde havia sido adiada por um contratempo da professora. Isso daria à Clara a possibilidade de se dedicar a Francisco no resto do dia. Seu pai, contudo, a presenteou com outra missão para aquela tarde de folga dele. Ele trazia no celular a propaganda de uma startup que contratava estudantes de TI.

A seleção era exclusiva para estudantes do gênero feminino e que fossem chefes de família. A empresa tinha como uma das premissas a valorização profissional da mulher e a inclusão de mães de família, solteiras ou não, no mercado de trabalho. O salário era um pouco maior que o do seu emprego atual e trazia a possibilidade de trabalhar em casa quando necessário. Clara enxergou nessa chance de trabalho uma oportunidade que superava sua questão individual. Atrás desse anúncio e dessa empresa, havia uma causa maior. O avô de Francisco avisou: “Melhor almoçarmos logo para você não se atrasar para a seleção. Pode deixar o Francisco comigo.” E, imitando voz de criança, fingiu sussurrar para Francisco: “O vovô só não pode lhe dar sorvete porque senão sua mãe vai brigar com a gente”. O pai pendurou Francisco no colo e cheirou seus cabelos cacheados de menino arteiro. Clara se encaixou entre eles e molhou o rostinho de Francisco com o gosto salgado do seu amor por ele.


Crédito da imagem:  Foto por George Pak em Pexels.com

Os textos representam a visão das respectivas autoras e não expressam a opinião do Sabático Literário.”

11 comentários em “Clara no Sistema

  1. Sempre muito agradável a fluidez da narrativa… tem a capacidade de envolver o leitor através de uma descrição vívida, cheia de matizes, quase a nos transportar aquele exato espaço-tempo…

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  2. Um texto com fluidez, com evolução que desperta curiosidade e ao mesmo tempo dramático. Lidi, vc trouxe um tema tão atual sobre mães chefes de família e seus desafios pessoais e profissionais que enfrenta uma sociedade áspera e nada empática a essa condição. Adorei o desfecho. O que será do futuro se as mulheres não puderem conciliar maternidade e carreira????

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    1. Esse tema precisa ser visto e discutido. Sobre os ombros das mulheres, há o peso dessa escolha, carregada de culpa e incerteza. Para além da realização profissional e da contribuição do trabalho da mulher para a sociedade, há primariamente a questão da sobrevivência dela e de famílias que dela dependem. Obrigada por seu comentário! Um grande abraço!

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  3. Senti aqui a aflição e o alívio de Clara. A emoção e o acolhimento da presença do avô . Memória e presença afetivas mudam o rumo dos acontecimentos. Excelente texto, Lidi.

    p.s. Clara conseguiu o novo emprego (parte 2)? rsrsrsrs.

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