SOB(RE) O GUARDA-CHUVA

Por: Lidianne Monteiro

Nunca gostei de guarda-chuva. Inicialmente, por questões práticas. Sempre o vi como um trambolho que passava mais tempo fechado, sendo levado de um lado para o outro, do que efetivamente sendo usado sobre nossas cabeças. E quando chegava a ser aberto para ser usado alguma vez, precisava depois ser carregado encharcado por muito mais tempo, deixando um rastro atrás de nós e molhando as outras coisas que precisávamos carregar além dele. Perdi as contas de quantos deles foram esquecidos nos mais diversos lugares, por mim ou por pessoas próximas, quando nos cansávamos da sua companhia e o pendurávamos na carteira da escola ou no assento do ônibus. Eu costumava dizer que os guarda-chuvas esquecidos ficavam presos em outra dimensão para nunca mais serem vistos. Porque todo mundo perdia guarda-chuvas mas não se sabia de ninguém por aí que os encontrasse.

Talvez essa minha antipatia para com o pobre objeto tenha se iniciado porque no meu Ceará não chove muito. Infelizmente. Talvez eu pensasse diferente se morasse em outro local com chuva diária e precisasse realmente contar com o guarda-chuva para a vida prática. Ou não. O que tenho certeza mesmo é que sempre gostei de chuva. Aqui, no Ceará, tempo bom é quando está “bonito para chover”.

Recordo que na adolescência passei por um inverno cearense muito chuvoso para os nossos padrões. Na época, eu voltava da escola para casa a pé, em um trajeto de uns vinte minutos de caminhada pelas calçadas de uma avenida muito movimentada. Eu sempre tinha a opção de voltar de ônibus, se preferisse. Essa escolha me pouparia tempo e garantiria menos exposição à chuva. Mas eu sempre preferia a caminhada sob a chuva. Mochila nas costas, livros relativamente protegidos da água em uma sacola plástica dentro da mochila, tênis nos pés, mãos livres, óculos dispensados. O ritmo da caminhada era o mesmo de sempre. Não me apressava por conta da chuva. Seguia tranquila como se nada estivesse acontecendo, sentindo a refrescância da água que escorria abundantemente sobre mim, o contato da roupa molhada que começava a pesar, os cabelos pingando e a maravilhosa sensação de liberdade, de seguir meu destino sem precisar de nada a não ser dos meus próprios pés. Naquela época, no auge da minha invencibilidade adolescente, não me preocupava com raios. Eu me sentia quebrando padrões. Observava com orgulho os olhares muito intrigados de quem passava nos carros ou ônibus e não entendiam o porquê daquela menina feliz sob a chuva torrencial.

Nesse mesmo semestre, meus cadernos chegaram ao fim do período letivo com as bordas mofadas. Porque por mais que tentasse protegê-los, a água é persistente e jeitosa, sempre vai dar um jeito. Eu passei anos contando essa história dos “cadernos mofados” nesse semestre chuvoso, exibindo-a como um troféu da menina diferente que eu achava que era. Da menina que tinha uma mão com unhas curtas e outra com unhas grandes para aprender a tocar violão, ainda que dissessem que não era bonito, e que fazia natação ainda que as amigas saíssem da turma porque o cloro “estragava” o cabelo. Eu seguia sendo menina-moça feliz com minhas escolhas.

Já na faculdade, por conta de não usar guarda-chuva, passei por uma situação que me deixou envergonhada. Eu havia ingressado no primeiro semestre de uma universidade federal onde o ingresso por meio de regras diferenciadas (como as conhecidas cotas de hoje) era uma possibilidade ainda distante de ser concretizada. Assim, alunos oriundos de escola pública, como eu, concorriam nas mesmas regras dos demais. Nós éramos minoria. O curso que escolhi tinha alunos de um perfil muito elitizado, vindos, em sua grande maioria, das melhores escolas particulares de Fortaleza. Muitos desses alunos iam à faculdade em carro próprio. Eu ia às aulas de transporte público. Nesse dia, estava chovendo muito e os ônibus estavam em estado de greve. Como sempre, saí sem guarda-chuva e tive muita dificuldade para entrar em um dos poucos ônibus que estavam circulando. Cheguei à faculdade atrasada e encharcada. Eu já estava acostumada a não levar guarda-chuva comigo. Então, fora o atraso por conta da greve dos ônibus, para mim estava tudo bem. Contudo, recebi um olhar de desprezo e o comentário com tom de deboche de uma colega de turma que disse: “Coitada! Toda molhada!”.  Nesse momento, desconectei-me da menina cheia de orgulho das caminhadas na chuva e me apequenei no meu lugar de minoria. Era minoria por ser mulher em um curso de muitos homens, por vir de escola pública, por andar de ônibus e por gostar de me molhar na chuva.

Minha relação com o guarda-chuva seguiu assim, ora de afastamento ora de trégua. Possuí alguns, principalmente depois que minhas filhas nasceram e eu não queria que se molhassem e adoecessem. Então, se chovia e elas estavam comigo, lá estava eu segurando o guarda-chuva para proteger as crias, e não a mim. Ainda nessa minha experiência pela maternidade, vi a palavra guarda-chuva ser usada também para se referir à condição de se abarcar várias tarefas de uma vez só, em mais uma tentativa de fazer as mães acreditarem que precisavam dar conta de tudo e de todos. Uma mãe guarda-chuva.

Semana passada, assisti a um filme que me relembrou dessa minha peleja antiga com os guarda-chuvas. Era a história de mulheres espiãs que lutaram contra o nazismo na Europa, na década de 40. Uma das mais brilhantes, a americana Virgínia Hall, tinha uma deficiência e andava com uma prótese em uma das pernas. Ela havia sido rejeitada pela diplomacia americana e tinha perdido relacionamentos amorosos por conta da sua deficiência. Apesar da dificuldade de se locomover com sua prótese de mais de 3kg, ela se lançou à luta contra o nazismo e correspondeu à altura a grande expectativa do governo britânico pelo seu trabalho de espionagem. Em uma das cenas, quando Virgínia ainda estava em sua preparação para a espionagem, um homem se aproxima dela e lhe oferece um guarda-chuva quando ela sai de um carro. Ela rejeita a oferta e diz: “Não uso guarda-chuva”. Essa frase simples ecoou cheia de significado em suas entrelinhas. Afinal, para quê Virgínia iria ter receio de se molhar se a vida dela tinha tantos outros obstáculos maiores a enfrentar? O que era uma chuva ou cabelos molhados para uma mulher que lutava o tempo todo contra a dor que a deficiência lhe impunha, sofrendo discriminação por ser mulher deficiente em uma sociedade machista e em um trabalho perigoso no qual ela precisava se reafirmar a todo instante? Nesse contexto, a chuva era apenas um detalhe. E proteger-se dela, definitivamente, não era prioridade.

Não quero nem de longe me comparar à Virgínia. Mas ouso compartilhar o sentimento de desejar que as mulheres possam buscar o caminho que mais faz sentido para cada uma delas, livrando-se dos guarda-chuvas, das amarras, das exigências e convenções que foram se consolidando ao longo do tempo e que, muitas vezes, reproduzimos sem nem saber o porquê. O guarda-chuva, nesse contexto, é também uma alegoria. E minha histórica rejeição a ele é reforçada pela ideia de que nem sempre queremos nos proteger. Porque em prol da “proteção”, muitas vezes, sucumbimos a pagar o preço de sermos como esperam que nós sejamos e não como verdadeiramente queremos ser e estar. Não há nada de mal seguirmos por um caminho diferente, se assim desejarmos. O guarda-chuva representa a proteção, um anteparo que pode nos resguardar de alguma coisa: da chuva, do sol, das regras, das expectativas, dos padrões… Eu às vezes quero me molhar apenas. E você? Quer mesmo se proteger do quê?

6 comentários em “SOB(RE) O GUARDA-CHUVA

  1. Amei seu texto, as vezes sou guarda chuvas, as vezes não sou nada nem quero nada só quero me molhar também. E a palavra trambolho me fez lembrar as conversas informais no seio familiar onde essas palavras cheias de diversos afetos surgem naturalmente. Abraço e parabéns.

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  2. Como a mera rejeição de um simples guarda-chuva pode trazer tantas reflexões ?! Sim, guarda-chuvas são abduzidos. Sim, numa cidade como Rio, São Paulo e Brasília não é possível sobreviver sem um a tira colo. Sim, a busca pela saída dos padrões é negar a falsa proteção desre objeto e se permitir a muitos banhos de chuva!!!! Muito bom o entrelaçamento entre as passagens.

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