CIGANA

Por: Katja Mota

Tudo começou quando não encontrou o sapato habitual no meio do caminho ao chegar em casa. Estranhou, mas não deu tanta importância, enfim, estava cansado, talvez um pouco entorpecido pelo álcool do happy-hour, o fato foi logo esquecido junto com o relaxamento de um banho quente.

          Os dias passaram normalmente, se é que pode sentir-se normal depois de ser atirado a um estado de solidão do dia para noite, totalmente fulminante. Há um tempo havia retomado a rotina de trabalho, aos poucos começou a aceitar os convites dos amigos para uma bebida, às vezes enfrentava a escuridão do cinema desfrutando de sua própria companhia.            

          Numa dessas incursões de animal sem matilha, visitou uma galeria de artes, foi tomado de encanto por um quadro que retratava uma cigana. O realismo no movimento das saias e sedução nos olhos marcados da mulher o impeliram a comprá-lo. Um pequeno pecado, um presente, um luxo que se permitiu. À princípio se recriminou pelo deslize, abandonando o quadro sem pendurá-lo sobre um aparador.

           Um dia entrou em casa e o cheiro de café recém coado o encontrou na porta. Um choque. Vasculhou cada canto da casa e não encontrou nada fora do normal. O café na garrafa. Há tempos não fazia café. Ainda intrigado sentou-se na poltrona em frente ao aparador, sorvendo o café quente observou o quadro, a cigana dançando inclinava levemente a cabeça para trás, feliz. Dançava para alguém, o sol iluminava seu colo. Sorriu ao se imaginar no cenário do quadro, uma tarde ensolarada de domingo, ouvindo o som da música gitana, encantado pelos movimentos frenéticos da saia, os cabelos balançando ao vento e ele ali envolvido por aquela beleza morena.

          Dormiu ali, na poltrona da sala imaginando a cigana, despertou coberto por uma manta. No final da tarde resolveu pendurar o quadro na parede, ali em cima do aparador de frente à poltrona.

         Os dias se tornaram uma sucessão de pequenos agrados, uma luz nova no quadro, um agrado novo na casa. Não entendia o que estava acontecendo, mas não conseguia quebrar o encanto. Era para ele que ela dançava e era para ele que fazia daquela casa um lar quente que o esperava todos os finais de dia.

          Seus instintos o chamavam, os hormônios exigiam dele, um corpo carecido de toque e demorou-se na rua. Chegou em casa e nada o recebeu. A cigana ali, tal qual o dia anterior. Saiu e bateu a porta para que ela tivesse a certeza de que ele estava saindo. Na volta trouxe consigo uma moça que tinha conhecido no bar, morena, bonita e ali na sua poltrona se conheciam, se acariciavam entregues ao momento. Quando no ápice da excitação foram surpreendidos pelo quadro que estatelando-se no chão. E ele passou a  noite aos prantos recolhendo os cacos.

Crédito da Imagem: Pexels

Os textos representam a visão dos respectivos autores e não expressam a opinião do Sabático Literário.”

Publicado por Katja Mota

Não fui eu, foi o meu eu lírico.

8 comentários em “CIGANA

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