Em janeiro do ano passado, participei de um desafio epistolar com uma comunidade de mulheres de língua espanhola. Nos três dias de desafio, enviei três cartas a uma estranha e devia receber três cartas de outra estranha.
Recebi uma bela carta de uma professora de literatura que morava em Cali, uma cidade tropical do interior da Colômbia onde – como ela diz – às vezes chove, mas nunca faz muito frio.
Ela me contou que mora em uma casa grande e amarela com quatro desconhecidas que sempre se ajudam ente elas. Como aquela vez em que seu gato ficou preso em algum lugar do jardim e todas a ajudaram a resgatá-lo.
Ela só me escreveu uma vez e durante algum tempo eu checava ansiosamente meu e-mail todos os dias, na esperança de receber a segunda e a terceira carta contando sobre sua vida tropical, mas essa carta nunca chegou.
Eu me interessei muito pela história dela, pois além de ser professora de literatura – profissão que considero maravilhosa – ela morava em Cali, cidade onde nasceu um movimento cultural nos anos 70, que alguns chamavam de Caliwood, muito rico em cultura e artes. A cidade da salsa, La María de Jorge Isac, Sandro Romero Rey, Patricia Restrepo, Pilar Quintana, Andrés Caicedo, Luis Ospina, Carlos Mayolo, o pandebono¹ e o chontaduro².
Pensei em escrever-lhe de novo para que me contasse mais sobre a sua vida e escrevesse uma crónica mais real, confesso que tenho alguns receios de escrever sobre uma cidade que não é minha, que nunca foi, mas de alguma forma senti que foi minha através da literatura, música e as curtas passagens que tive por ela.
Também tive medo de arriscar e ela me dissesse – como disse uma vez Luis Ospina – que o narcotráfico acabou com a cultura de Cali, ou que em Cali agora só existe o futebol, como já disse Sandro Romero Rey.
Decidi então criar minha própria versão da Carla, aquela professora de literatura que passava noites inteiras em frente à máquina de escrever tomando café e escrevendo poemas, escrevia palavras aleatórias que rimavam umas com as outras e depois juntava para criar belos versos.
Imaginei que ela chamava aquela casa grande e amarela de Casa Solar e suas quatro companheiras de casa também eram artistas e de vez em quando realizavam exposições de fotografia e peças de teatro abertas ao público no quintal da casa.
Ela ouvia “Elsa y Elmar” e dava aulas de literatura na Universidade del Valle, onde o fantasma do jovem escritor Andrés Caicedo a perseguia pelos corredores, nos quais o viu parado entre as ondas do oceano Pacífico que tinham viajado centenas de quilômetros até entrar no recinto.
Falava para seus alunos sobre “Que viva la música” e “El Atravesado” de Caicedo, “Las cerimónias del deseo” de Sandro Romero Rey e “La perra” de Pilar Quintana.
Aos sábados, gostava de passear nas livrarias e de vez em quando estacionava no corredor para ler um poema achado entre as prateleiras.
À tarde, quando voltava da faculdade com fome, comia chontaduro com mel e sal sentada no terraço de seu quarto observando o pôr do sol e acariciando seu gato, enquanto ouvia Let it bleed dos Rolling Stones.
E depois de imaginá-la de muitas maneiras e em muitos lugares, imaginei-a lendo essa história e me mandando para o inferno de raiva por ter inventado uma ficção tão distante de sua realidade simples e plana.
E depois de me mandar para o inferno, ela continuaria comendo, escrevendo, ensinando, dançando, continuaria sendo o que sempre foi. https://www.youtube.com/watch?v=JXw9HXXcUK4&ab_channel=ElsayElmar
¹ Produto de panificação típico do Departamento de Valle del Cauca com alguma semelhança com o pão de queijo.
²Fruto vermelho ou amarelo comestível
Texto lindo! Eu também viajei para a Casa Solar.
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Há muitas coisas que gosto nos textos da Dani, mas tem uma que amo: o tanto de cultura que ela apresenta. Parabéns, Dani! Sempre bom ler você! 👏🏽👏🏽👏🏽
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