Chegou na cidade na hora de mais calor. Estava tão feliz arrastando sua mala colorida pela rua de pedras que nem se importou com o suor que escorria em bicas e encharcava o vestido. As rodinhas da mala trepidavam pelas pedras do calçamento e faziam tanto barulho que ela mal conseguia ouvir a conversa da mãe que caminhava ao seu lado.
Fazia muitos anos desde a última vez em que estivera ali. As lembranças mais felizes daquele lugar eram as memórias de criança arteira que uma vez por ano vinha passar férias no interior do Ceará. Hospedava-se na casa dos avós, desfrutando de todos os mimos que recebia quando vinha do outro lado do mundo para a terra natal do pai falecido. Lembrava do cheiro da comida da avó, das brincadeiras com os primos na calçada, no fim da tarde, e do sorvete de castanha “o-melhor-do-mundo” que o tio trazia toda noite quando chegava do trabalho. Provou sorvetes famosos em vários países, sempre na tentativa de reviver aquele sabor mas nunca experimentou outro nem parecido.
E nem encontraria. Porque o que ela buscava naquela lembrança do sorvete de criança era muito mais que o simples sabor de um doce. Sorriu com as lembranças e o coração se encheu de um frescor gostoso que a arrepiou por inteiro. Já para a mãe, viúva, caminhando ao seu lado, as lembranças eram outras… Na verdade, conhecia pouco daquela cidade. E justamente por isso ficava tão impressionada com as lembranças que borbulhavam feito água fervente e queimavam seu peito de uma forma que há muito não sentia. Não conhecia a cidade mas conhecia o homem. E tudo ali parecia com ele.
A filha a puxou pela mão e o toque a fez voltar rapidamente para o momento presente, como que embarcando de volta no trem expresso do túnel do tempo. Lembraram do avançar da hora e apressaram o passo. Seguiram para a casa da irmã caçula do pai. O almoço já devia estar na mesa e a algazarra de crianças e adolescentes já devia estar a todo vapor. Certamente alguns tios já estavam cantando as músicas de sempre, desinibidos pelo álcool que, a princípio, traz a euforia e, no final, os conduz em botes lotados pelo rio de lágrimas pelos que já se foram. Como diz Mia Couto, “morto amado nunca para de morrer”.
Ela perdeu o pai quando era muito pequena e ainda estava engatinhando pelo mundo dele. O universo do pai se incorporou ao dela de uma forma diferente. Ao invés de memórias construídas pelos dois ao longo dos anos, ela própria edificou o castelo de memórias do pai. A cada foto e história sobre ele, um tijolinho era cuidadosamente colocado nesse castelo. Sem dúvida alguma, as memórias mais frescas e leves do pai eram sorvidas nesses encontros com a família paterna.
Às vésperas de completar seus trinta anos, ainda se surpreendia com as semelhanças entre si mesma e vários dos seus familiares. E era revelador para si própria observar a reciprocidade de ser, também, parte deles. Ela sabia que tamanha identificação podia estar sendo potencializada pela emoção de vê-los e pelo desejo que a acompanha por toda a vida de fazer parte do universo do pai.
Estar com os familiares paternos era um exercício constante e surpreendente de reflexão, autoconhecimento e identificação. Nas coisas profundas e nas simples também. Era uma risada mais escancarada de um tio ou o ritmo cadenciado do caminhar de uma prima ou, ainda, a habilidade em tocar instrumentos ou o gosto em soltar a voz acompanhando músicas antigas da MPB. E tudo isso personificava o pai e fortificava e ampliava seu castelo de memórias. Ora se empenhava em trancar as novas lembranças recém-criadas ora se deixava conduzir pelo momento despretensioso de apenas conviver e (re)conhecer cada um dos seus.
O almoço seguia em tom festivo. Em pouco tempo, o distanciamento inicial causado pela demora da visitante em ver os parentes se desvaneceu. Todos, do seu jeito, iam se aproximando aos poucos, contando as novidades, apresentando os novos membros da família, recontando histórias antigas, cantando as músicas que lembravam o pai e o avô… Para eles, ela era tão bonita e cheia de vida e juventude! Sua presença trazia imensa alegria e completava a foto de família que iria ser tirada para registrar esse momento. Ela era deles e, ao mesmo tempo, era única e apenas de si mesma.
Findo o dia, ela estava transbordante do sentimento de pertencimento, intimamente reafirmava para si que tinha o mundo inteiro mas que isso não a descredenciava do direito de chamar aquele pedacinho de lugar de seu também, onde parte das suas raízes está fixada em terra dura e firme, ao lado de cajueiros e carnaubeiras. E ainda que haja lutas árduas e desafios sempre à espreita, ela tem a confiança de contar com um reino imenso em seu castelo interior de memórias, como a princesa que tem sempre ao seu lado um rei jovem, risonho e revolucionário.
*O título do texto faz referência a música do compositor cearense Belchior, conterrâneo da família que inspirou esse texto de ficção. Para ouvir a música, acesse: https://fb.watch/b5-MUPtlei/
Crédito da Imagem: Foto por Paulo Barros disponível em http://siteantigo.pi.gov.br/materia/semar/carnauba-e-eleita-arvore-simbolo-do-piaui-2913.html
“Os textos representam a visão das respectivas autoras e não expressam a opinião do Sabático Literário.”
Oi, Lidiane. Seu texto levou- me à minha infância, a casa de engenho do meu avô, onde comíamos a farinha de mandioca torradeira na hora e o mel doce de cana de açúcar, que se transformaria numa rapadura dos Deuses. Obrigada. Parabéns!
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Que lindas lembranças puderam ser despertadas, Jovina! Fico feliz.
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