EU NÃO TENHO CÓDIGO DE BARRAS

Por: Lidianne Monteiro

Meu nanochip estava dando sinais de instabilidade há algumas semanas.

As falhas, a princípio, não me prejudicaram muito. Uma loja que entrei e a vendedora me ofereceu artigos que eu não tinha interesse, o robô do supermercado que me trouxe comida para o passarinho que não tenho, o café que veio descafeinado quando a cafeína é minha mola propulsora…

Mas a gota d’água foi no trabalho e quase me rendeu uma demissão. Em uma reunião importante para contratação de um cliente que bateria minha meta individual anual, meu código retornou que eu estava o tempo todo flertando com o cliente. Nossa empresa não permite que desconectemos o código individual. Então nossas emoções ficam ali à disposição de quem quiser ler com seus óculos de decodificação. Dizem que é por isso que nossos clientes nos veem como confiáveis. Eu só percebi essa falha no meu chip ao fim da reunião, com o cliente me olhando desconcertado e meu chefe querendo me matar. E o cliente nem fazia meu tipo. Só o contrato dele é que verdadeiramente me interessava! Quando o chip enviou sinais para o meu celular e a tela começou a piscar intermitentemente informando que algo estava errado, é que me dispus a conferir a decodificação que eu estava exibindo. Vi muitos corações flamejantes e nada de cifras e objetividade. Daí até explicar a eles que o meu chip estava com defeito, apesar da manutenção periódica estar em dia, foi uma novela mexicana. No fim das contas, acho que ninguém acreditou mesmo e eu posei como uma descompensada que não sustenta uma reunião sem deixar seus impulsos passionais dominarem a cena.

Na volta para casa, depois que o carro travou e deixou de funcionar porque queria me obrigar a ouvir samba nesse dia cinza de poucos amigos, resolvi largar os outros compromissos e encarar a manutenção corretiva do meu código. Se meu chip estivesse funcionando adequadamente, não enviaria o comando para tocar samba naquele momento.

Aguentando o carro que insistia no samba de feijoada de domingo, fui até uma unidade de atendimento de plantão. Na sala de espera, o robô da triagem me conduziu para o primeiro atendimento. Eu disse a ele que não se ofendesse mas que meu caso era grave, tinha que ser resolvido por um humano. Ainda assim, ele seguiu o algoritmo e me submeteu a uns testes que eu sabia que não iam ajudar em nada. Superada essa fase, fui para a sala onde o atendimento seria com um humano, um luxo que felizmente meu plano de manutenção de código me permitia usufruir.

Na sala, várias pessoas aguardavam atendimento. Percebi que todas as pessoas cujos códigos estavam requerendo manutenção corretiva de nível avançado eram mulheres. Nem adiantava colocar os óculos que me retornariam com a descrição delas e de seus estados de espírito. Assim como eu, todas estavam com seus códigos desbalanceados. Diferentemente de mim que estava deveras mal-humorada pela reunião malsucedida e pelo samba de brinde, algumas pareciam bem contentes. Escutei uma delas dizer que estava se sentindo livre, com seu código desligado permanentemente. Mas estava ali porque tinha recebido duas multas da agência reguladora. Quase cochichando para sua interlocutora de sala de espera, confessou: “Esse código nunca soube me ler de verdade. E nem vai conseguir. Estou aqui porque sou obrigada mas sei que não vai dar certo”.

O burburinho da recepção foi silenciado pela entrada de uma mulher misteriosa que serpenteou pela sala com seu passo rápido e leve, como uma gata astuta com itinerário minuciosamente calculado. Rapidamente sacou da bolsa um dispositivo-mensageiro que foi sendo colocado em cada um dos nossos celulares. Ao colocar meus óculos decodificadores para entender um pouco sobre ela, fui alvejada por um olhar duro. Percebi o porquê quando meus óculos retornaram com mensagem de código inexistente para aquela mulher. Ela não tinha chip.

Os dispositivos-mensageiros nos trouxeram automaticamente a propaganda de um levante de mulheres contra a prática obrigatória dos códigos ambulantes que classificam a todos e expõem mentes, desejos e sentimentos. Eu já tinha ouvido falar desse movimento mas era a primeira vez que ele chegava tão perto de mim e da minha irrefletida vida de monitorada. O movimento era tão antigo que ainda se reportava ao começo do monitoramento. O levante se chamava “Eu não tenho código de barras”. 

As outras mulheres da sala não demonstraram surpresa com a visita subversiva. E algumas até trocaram olhares de cumplicidade com a militante. Por alguns instantes, fiquei absorta pensando como seria a vida sem o código. Desde que nasci era assim. Não sabia como era viver de outro jeito. Fui despertada pela notificação do meu celular de que havia sido disparada uma mensagem automática para todos os lugares onde estive e pessoas com quem interagi nas últimas semanas, informando da minha localização naquele momento, em uma unidade de manutenção de código. A notificação informava do envio de um relatório sucinto das falhas (ainda sem solução) do meu chip. Emprego e reputação salvos!

Um sinal sonoro e metálico avisou que em instantes um humano viria até a recepção buscar a próxima pessoa a ser atendida. Uma notificação nova no meu celular indicou que a próxima da fila seria eu. Uma pessoa com fisionomia familiar apareceu na porta, olhou-me e com um movimento de cabeça me deu permissão para que eu me aproximasse. Recolhi minha bolsa apressadamente e quando olhei a humana com atenção identifiquei de quem se tratava. Espantada, tentei rapidamente decodificar seu código com meus óculos mas não consegui. Ela também não tinha chip! Então, em um rápido movimento, ela levou o dedo indicador aos lábios em um sinal para que eu ficasse em silêncio. E seu rosto rígido e enigmático emoldurado pela porta de vidro fosco se desvaneceu e nada mais eu vi.

Comentário: Este texto veio de um insight (dentre tantos) de uma conversa nada futurista em uma sexta à noite com Afrânio de Sousa Alves, a quem dou os créditos pelo título do texto, utilizado por ele em referência a si próprio.


Crédito da Imagem: Foto por Tara Winstead em Pexels.com

Os textos representam a visão das respectivas autoras e não expressam a opinião do Sabático Literário.”

6 comentários em “EU NÃO TENHO CÓDIGO DE BARRAS

  1. Excelente texto Lidy. Apesar de vc dizer q foi fruto de uma conversa nada futurista me remete a um filme de ficção científica rodeada de robôs programados para tudo, assim como nós, sendo consumidos dia a dia com nossas programações rotineiras…
    Parabéns Lidy

    Curtido por 1 pessoa

    1. A conversa que me deu o insight para o texto não era necessariamente “futurista”. Rsrsrs. Falávamos quão complexo é cada ser humano. E que os códigos de barras e Qrcodes usados para as “coisas” não nos alcançavam. Daí a ideia de ir por um caminho “futurista” para falar dessa reflexão nesse texto. Que bom que gostou!

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  2. Texto futurista? Nem tanto…rsrs
    Seu texto (tão deliciosamente fluido e natural ) nos faz refletir sobre o quanto a tecnologia tem invadido e plasmado a sociedade em que vivemos nos propndo outros limites entre a individualidade, a privacidade e o público e coletivo…
    Sem dúvida, uma das questões mais importantes para esses tempos!!!!

    Curtido por 2 pessoas

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