Já há algum tempo eu tenho pensado muito na minha ancestralidade e no que as mulheres incríveis que vieram antes de mim me deixaram de legado.
Nesta semana que passou escutei a frase de que herança seria diferente de legado. Enquanto a herança seria o que você deixa para o outro, o legado seria o que você deixa “no outro”. Já há algum tempo eu tenho pensado muito na minha ancestralidade e no que as mulheres incríveis que vieram antes de mim me deixaram de legado. Para muito além dos genes que gentilmente recebi, tem nesse legado um quê de força, de dores, de crenças e valores passados de geração em geração e que chegaram até mim, ajudando-me a construir a pessoa em que me tornei, fosse replicando e repassando parte desse legado já transformado pelas minhas próprias vivências ou mesmo me rebelando e rompendo com ciclos deletérios que as fizeram mais sofrer do que florescer.
Quando a gente tenta voltar no tempo, não viajando por uma máquina como nos filmes de ficção científica, mas embarcando na nuvem fresca e macia das lembranças, comumente alcançamos mães, tias e avós. Felizes daquelas que puderam conhecer e conviver com suas bisavós, tendo a oportunidade preciosa de sorver in natura as histórias delas, relatadas com a vivacidade que nos transporta para um tempo antes de nós.
Tenho lembranças muito marcantes das minhas duas avós. Tanto da avó que beijei, abracei, que me alimentou, que me ensinou a andar de bicicleta e colocou mertiolate nas feridas das quedas da infância quanto da avó que meus olhos mundanos não alcançaram ver os seus, porque ela partiu antes de eu chegar. Para ambas, carrego comigo a sensação de que também são parte de mim e que se encaixam em várias partes do quebra-cabeça da minha identidade.
Minha vó Noeme foi a avó que conheci ao vivo e em cores. É a avó que tem cheiro de café e tapioca com coco fresco ralado por ela, que fazia chá de capim santo para eu tomar no café da manhã quando estava com dor de barriga. Ela era a avó que guardava só para mim a nata do leite fresco para colocar sal e eu comer com pão fresquinho quando eu aportava na casa dela nas férias escolares.
As lembranças mais recorrentes que tenho dela têm como pano de fundo o cenário da cozinha da casa de São Gonçalo. Cozinha que era só dela e de onde tolerava ruidosamente, uma vez ou outra, alguma ajudante intrusa. Adorava vê-la moer a carne em uma máquina manual que ela tinha, onde moía a carne junto com as ervas e verduras, potencializando o cheiro gostoso do tempero no calor da tarde. Fazia isso quando se levantava da sesta e depois de preparar o café para quem fosse chegando. Era sempre um vai-e-vem de tios e primos chegando para tomar esse café e ter um dedo de prosa com ela. Quando dormia mais tempo depois do almoço e a gente comentava, dizia: “Não dormi nada! Estava acordada o tempo todo, só com os olhos fechados”! E ríamos dizendo que ela não queria admitir que tinha dormido “demais”.
Na verdade, ela parecia se justificar porque talvez sentisse que não tivesse o direito de descansar. Vejo esse legado em algumas posturas das mulheres da minha família que têm essa cobrança interna e desmedida de que mulher e mãe não podem descansar porque tem sempre que estar atentas às necessidades dos seus. Os legados são assim mesmo, uma base em que construímos nossa identidade, replicando ou ressignificando as marcas que ficaram na gente.
Ela era a avó incansável em cuidar dos seus e o cuidado podia ser sentido no carinho de fazer a comida preferida de cada um, escolhendo os ingredientes e fazendo vários menus diferentes para agradar a todos, ainda que precisasse ir ao mercado quase todo dia, sob os protestos das filhas que reclamavam que ela se cansaria muito com esse movimento. Ela se sentia satisfeita em ver a mesa cheia dos seus sendo alimentados pela sua mão.
Lembro da vó Noeme ensinando-me a andar de bicicleta. Foram incontáveis as pedaladas em frente à igreja matriz, contornando a mangueira centenária em frente à casa, o asfalto ainda morno pelo início do anoitecer e os familiares já chegando para se reunirem sentados em cadeiras de balanço colocadas na calçada. Ela permanecia incansável, segurando a garupa da bicicleta de forma que eu não a visse. Sem vê-la, eu não percebia os momentos em que ela me deixava pedalar sem apoio, exercitando a confiança de que eu precisava para saber que iria conseguir, simplesmente porque ela estava ali.
A vó Noeme vivia tão intensamente em prol da família e do meu avô que cuidou dele até o último dia. E, depois da partida dele, ela também se deixou ir. Sua mente poderosa manteve seu corpo firme mesmo no avançar da idade porque ela entendia que ele precisava dela. Quando ele se foi, ela, de certa forma, também se permitiu descansar. A saga não foi curta nem fácil por toda uma vida, incluindo se mudar temporariamente com a família de filhos pequenos para acompanhar meu avô que se lançou à loteria de conseguir uma vida melhor embalado pelo ciclo da borracha na década de 50. A passagem pelo Norte não correspondeu às expectativas e eles retornaram ao Ceará trazendo pela mão a maior vitória dessa empreitada: minha mãe recém-nascida. A fortaleza da minha avó como mulher me inspira e me deixa um legado de amor incondicional e dedicação, ainda que eu exercite o ressignificar constante desse legado, entendendo-me como mulher que exerce outros papéis que minha avó, em seu tempo, não pôde exercer. Fosse pelas limitações que a vida lhe impôs em sua juventude, com escassez de recursos, de instrução e de apoio, reforçadas pelos costumes da época que a impediram de reinar para além dos muros da vida familiar.
O quadro em que pinto minha avó paterna, por sua vez, tem o colorido das mulheres criativas, pensantes, que causam admiração com o que constroem para além da vida doméstica.
Como não a conheci em vida, a imagem dela foi desenhada com o lápis das palavras e impressões dos que a conheceram. Assim, terá sempre uma aura de poesia, de etéreo, ao mesmo tempo em que sua vida foi tão real como o fato de eu estar aqui escrevendo sobre ela. Minha avó de corpo franzino, submissa ao meu avô paterno na vida familiar, mãe e avó quase ao mesmo tempo, tinha um jeito só dela de ganhar asas e inspirar as pessoas fora do círculo familiar. Minha avó Fransquinha Eulália escrevia cantigas para serem cantadas na igreja, hinos religiosos para o padroeiro da cidade, peças de teatro e até jingles para as campanhas políticas. Tudo isso no interior do Ceará, na década de 30, em meio às adversidades de viver em uma terra seca, em um distrito afastado da sede, com filhos, marido e casa para cuidar. Ainda assim ela encontrava uma forma de expressar o que acreditava, tal qual como eu estou fazendo agora.
Desde a minha infância, minha avó Fransquinha sempre foi apresentada como uma mulher muito inteligente e criativa. De tanto se falar nela, eu a imagino tal qual como se eu a tivesse visto em vida, de corpo inteiro, o jeito de andar e de falar, talvez fruto de uma miscelânea de outras mulheres em que a vejo refletida de alguma forma. Inclusive em mim que quase recebi o nome dela para chamar de meu, Eulália.
O quanto em mim vêm de todas essas mulheres, o quanto de mim está e ficará nas minhas filhas e nas filhas delas… não saberei dizer. Apenas saúdo a todas e agradeço pela força dessa ancestralidade que permitiu que eu estivesse aqui, com tantas escolhas e caminhos que cada uma dessas mulheres poderia ter seguido, todas escolheram, ainda que indiretamente, por mim.
Os legados são assim mesmo, uma base em que construímos nossa identidade, replicando ou ressignificando as marcas que ficaram na gente.
Lidianne monteiro
Crédito da imagem: Foto por Marko Milivojevic de Pixnio
É mágico saber que em nós reside tanto de tantas e que somos únicas, alquimia da diversidade que nos faz ser.
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Muito mágico mesmo sabermos que temos tanto de outras mulheres e, justamente por isso, somos singulares.
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Emocionante! Um texto singelo, profundo, autêntico e honesto. Repleto de noltagia e amor. Que desperta um autoconhecimento que parte do que veio antes de si e leva até o futuro vindouro. Uma viagem no tempo genealógica. Parabéns.
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Obrigada, Karina! Tem muito amor mesmo em cada linha.
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Achei mágico uma verdadeira viajem no tempo com cheirinho de tapioca e café que também tive a honra de tomar nessa cozinha tão aconchegante de São Gonçalo. Nossa ancestralidade é tão rica e dela nossas raizes retiram a força necessária para os desafios do dia a dia. Amei.
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Lidianne, que riqueza de detalhes! Texto nos leva a sentir o cheirinho do café da Avó Noeme e abraçar as inspirações da Avó Eulália…Parabéns Lidi por compartilhar histórias tão fortes e inspiradoras!
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Obrigada pelo carinho, Ramana!
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Isso, Karlinha! Essa força pode ser invocada em cada grande passo que nós temos que dar, lembrando toda a base que recebemos de legado ao longo dessas gerações.
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Nossa Lidy fiquei encantada com a narrativa rica de detalhes, de olhos nostálgicos da vida de mulheres que foram e sempre serão sua referência.
Parabéns
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Que bom que você se sentiu tocada pela minha história! Gratidão, Regina!
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