A gente saiu da missa após Gabriel cantar que “é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã…”. Essa nunca foi minha parte preferida. Sempre gostei mais quando Renato Russo entoava “o amor é fogo que arde sem se ver.”
Um contentamento descontente é melhor que só dor. Era assim aquele grupo para mim, tal qual algo que a gente se contenta enquanto espera algo melhor acontecer.
No final daquela missa fomos para a saída lateral, para nossas despedidas e para marcar onde seria o reencontro mais tarde.
Normalmente tínhamos o segundo encontro do grupo jovem na varanda da minha casa, com pelo menos dois amigos tocando violão e as meninas cantando. Alguns se tornaram casais nesses encontros, outros tentavam sem sucesso.
Nesse dia em particular nós tínhamos outras opções. Gabriel disse que queria ir ao encontro de outros amigos, estavam reunidos perto da casa dele numa roda de conversa e música. Uma festa do Círculo de Fogo.
A líder do grupo jovem, carismática para a maioria, mas cheia de uma soberba irritante para mim, tinha um passeio em um clube. Seu pai tinha dinheiro, levaria a ela e aos amigos que ela convidasse para se divertir por sua conta.
O grupo tendeu na íntegra a aceitar o convite da líder, eu não. Pode ser que pareça pecado o que vou dizer, já que éramos um grupo de jovens saindo da missa e que se encontrava para falar do amor de Deus. Mas tinha algo na voz dela que me irritava. Um esnobismo incompreensível, que me causava uma tremenda ira. Eu não queria sentir, mas sentia.
Era cedo para voltar para casa. Então, eu e minha melhor amiga, Carol, aceitamos o convite do Gabriel e fomos para a festa do Círculo do Fogo.
Caminhamos por cerca de meia hora até que chegamos ao local. Era uma festa americana, as pessoas tinham levado comidas e bebidas. Nos sentimos um pouco intrusas mas seguimos em frente.
Estavam todos no quintal dos fundos, o irmão do Gabriel com o violão cantava junto com o grupo a música do Capital Inicial. Nas minhas entranhas eu ria e achava louca a coincidência de ter todo aquele fogo presente: uma fogueira, um facho aceso numa tocha, uma música que falava “é tão certo quanto o calor do fogo”, e a vergonha que ardia no meu rosto por chegar na festa de mãos vazias.
Carol e eu fizemos um breve aceno e continuamos a cantoria com o grupo: rapazes e moças que eu não conhecia, não eram da minha escola nem frequentavam nossa igreja. Divertido como mudar de bairro mudava todo nosso contexto e nos deixava perdidos.
Acabada a música, o carinha que era uma graça e estava sentado ao lado do Gabriel pegou uma maraca e sacudiu. Soltei um risinho bobo, ele não notou. Feito isso, falou uns versos de Milton Nascimento sobre guardar amigos no coração. Passou a maraca para a menina ao lado dele que lembrou uma passagem bíblica sobre a força da amizade. Comecei a entender que existia um padrão: as pessoas falavam sempre algo relativo a amizade.
A-ha! Meu cérebro lógico não me deixava na mão, aquele era um encontro temático.
A menina seguinte passou a maraca sem nada dizer. Olhei pra Carol e sussurrei “vou falar também “. Ela me incentivou com o olhar. Outro rapaz falou a frase sobre amigos serem irmãos e discorreu sobre o assunto alguns minutos.
A cada um que passava a maraca, uma chacoalhada, uma frase, um poema, uma música, uma recordação mesmo que breve.
Chegou minha vez, eu estava empolgada, falei sobre a felicidade de estar com aquele grupo especial, por ter dois grandes amigos comigo.
Carol chacoalhou a maraca e passou sem nada dizer e assim foi até chegar no Gabriel, com o círculo se fechando. Ele agradeceu as palavras e passou a maraca para seu irmão cantar.
Durante a música, algumas pessoas se levantaram e eu aproveitei para beber água. Uma menina se aproximou de mim.
– Pena que vocês tenham vindo num dia tão triste. Normalmente estaríamos mais alegres, com dança e sangria, mas hoje estamos fazendo uma homenagem ao nosso amigo que cometeu suicídio.
Nesse momento desabou minha máscara de vaidade e minha aparência ostentava o choque da informação. Não podia acreditar que estava ali por quase uma hora sem notar os sinais.
Deus, que ser humano sem compaixão eu fui! Tinha um arranjo na mesa ao lado do buffet de comidas com uma foto, velas acesas tremulando e vários cartões com mensagens dentro de um jarro de vidro.
Não compreendi o significado do ritual, nem os sentimentos de quem estava a minha volta.
Soube um pouco mais do menino quando Gabriel chegou com Carol ao seu lado.
– Me desculpa, meninas. Não sabia que seria assim hoje.
– Você o conhecia?
– Sim, mas não éramos muito próximos. Ele era de outra igreja, onde meu irmão participa. Às vezes ele vinha para a festa do fogo, mas sempre ficava na dele, sabe? Muito introspectivo. Soube hoje que foi depressão.
– Quantos anos ele tinha? – Carol quis saber.
– A mesma que a gente.
Baixei minha cabeça e não consegui conter as lágrimas. Conheci a depressão de perto, um ano antes, e me lembrava bem da sensação de não ter saída, de estar encurralada no canto escuro.
Carol e Gabriel me abraçaram, sentiram a dor que eu compartilhava com aquele menino. Eu tive apoio e achei a saída. Ele não. Gabriel achou melhor me levar para casa. Voltamos andando na penumbra das ruas do meu bairro. Ao lado dele, um outro rapaz que viera para fazer companhia no retorno.
Nunca mais participei de outra festa do Círculo de Fogo. Aquele grupo jovem que me apoiou quando nada fazia sentido seguiu suas vidas adultas, cada um no seu caminho, às vezes um encontro, outros tantos desencontros.
A depressão que um dia me manteve refém volta de tempos em tempos para me lembrar que ela ainda existe. A diferença daqueles tempos para hoje é que quando ela vem, vem também a lembrança e a certeza de que tenho muitos amigos que não soltam minha mão, mesmo que não estejam comigo. E a vida volta ao curso.
Os amigos são como anjos que seguram nas nossas frágeis mãos nos momentos mais difíceis. Assim nunca estamos sozinhos.
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Quem seríamos nós sem essas almas que escolhemos para chamar de irmãs?! 😍
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