DIARIAMENTE

Por: Lidianne Monteiro

Tenho que lavar o cabelo.

Agora estou sem paciência.

Será que dava para aguentar sem lavar até amanhã?

Olho no espelho. Reparo na cor dos fios. Ora gosto. Ora duvido se a última cor ficou boa mesmo. Mas eu ia apenas decidir se estava sujo. Foco.

Lembro que amanhã terei um compromisso muito cedo.

Melhor lavar logo o cabelo hoje. Mas estou atrasada. Não vai dar.

Amarra o cabelo e vai!

Preparo a marmita do almoço e dos lanches da manhã e da tarde. 

Deixa eu lembrar o que levei ontem e nem comi. Ah! Com certeza deve ter algo na geladeira do trabalho que não deu tempo comer essa semana, feito aquela maçã sem graça que segue escapando de ser devorada. Sorte dela.

Acho que estou engordando de novo. Qual meu peso na semana passada? Esqueci de anotar. Peso agora. Mas já tomei café. Então melhor só me pesar amanhã. Na próxima vez, não esquecerei de anotar.  

Interfone toca.

O taxi chega.

Pego o kit de sobrevivência “fora-de-casa-o-dia-todo-na-pandemia”. Da máscara não esqueço mais. E a maquiagem pela metade já virou costume. A gente se acostuma com tudo. Reflito. A máscara fica amarelada na parte interna por conta do protetor solar com cor e do pó. Às vezes tasco um batonzão vermelho também. Ninguém vai ver mas eu sei que estou com ele. Eu sinto que estou com o batom dos superpoderes.

Tenho que descer. Falta tomar as vitaminas e o colágeno dissolvido na água para dar uma animada na cartilagem do joelho. Esse é o tipo 2, conforme o ortopedista comentou. Não vai dar tempo. Só uma vezinha sem tomar não vai atrapalhar o tratamento. 

Lembro que talvez precise resolver umas pendências na hora do almoço. Então preciso trocar a sandália de salto por uma sapatilha mais confortável. Volto para o quarto e troco o calçado. A sapatilha não combina com o resto do look. O taxi já está lá embaixo. Vou de sandália alta mesmo.

Na saída do quarto, driblo a cachorrinha que me quer um pouquinho só para ela. Mas não vai ser agora.

Entro no quarto da pequena que está sonolenta em sua aula online. Beijo sua bochecha e desejo um excelente dia. 

Coloco a máscara e os óculos escuros. 

Entro no elevador que está com a cabine deteriorada. Esse prédio precisa de obras. Quando vim aqui pela primeira vez nem me importei por ser antigo. Agora, penso se foi um bom investimento.

Olho para os pés e a sandália dá sinais de que não vai ser condescendente com minha correria. As unhas dos pés estão bonitas. Mais tarde preciso cortar as unhas dos pés da minha caçula. Estão horríveis. Só me lembro quando ela não está comigo. Então não devem estar tão horríveis assim. Tenho que cuidar mais dessas coisas todas. Escovar os dentes do cachorro todo dia. O gatinho eu sei que não vai deixar. Ainda fui inventar de criar cachorro. Mas eu amo os bichinhos, fazer o quê? E quem vir dizer que fui procurar sarna para me coçar, nem vou me importar.

O elevador pára e entra outra mulher tão carregada de objetos quanto eu.

Ela pega o celular e envia um áudio com várias instruções. Está ofegante pelo esforço de todo o movimento. Cai uma planilha impressa e eu me ofereço para ajudar. Lembro do artigo que uma amiga me incentivou a escrever sobre uma metodologia nova que criei. Um dia o artigo sai! Não sei quando.

Minha companheira de elevador está de tênis. Que inveja! Comprei um tênis que fica bem bonito com essa minha roupa de hoje. Mas esqueci que tinha essa opção.

Sobressalto-me lembrando do taxi me esperando.

Checo se estou com meu celular. Sair de casa sem ele seria o caos.

No caminho até o taxi, olho para o céu e está um azul esplendoroso. O vento balança as folhas no jardim, derramando algumas em meu caminho. Que lindas! Só tenho esses minutinhos para ver o céu azul? Depois que me internar no trabalho, só saio à noite, com o céu escuro de estrelas.

Olho para o táxi e reavalio se é a melhor opção para os deslocamentos diários. O combustível está tão caro! Aonde vamos parar com esse custo de vida? O táxi é um conforto que me poupa um pouco do stress de dirigir nos engarrafamentos.

Faz sentido essa correria toda? Vou ser mais leve. Preciso. Consigo? Quero?

Entro no taxi. O motorista é daqueles de muita conversa. Lembrou que me buscou outro dia. Lembrou até com quem eu estava. Eu hein? Prefiro ficar quietinha para ver se ele desiste de interagir. “Meu senhor, já tem coisa demais na minha cabeça! Deixe-me quietinha por favor!”.

Aproveito a trégua do motorista e olho o celular. Começo também a enviar minhas mensagens de resposta ou pedindo respostas. Todos querem resposta. Vamos começar pelas mais importantes. Ou urgentes. Melhor, pelas urgentes e importantes. Penso que não deveria agitar minha mente tão cedo. Mas ainda tenho que decidir se essa minha agitação matutina é boa ou não. Já pensei nisso outras vezes. Lembro de respirar. Resolvo olhar a vida pela janela. Parece um filme sem sentido em uma tela em movimento. Mas quem se movimenta mesmo não é a janela ou as árvores. Sou eu. Essa constatação me intriga. Reflito novamente. Guardo o celular na bolsa. Mas bem que eu podia adiantar aquele assunto pendente, né? Mas adiantar para quê? Para quem? Precisa mesmo? Precisa não. Vou relaxar um pouquinho.

Chego no destino. Já? Nem relaxei nem respondi às mensagens. Nem tomei as decisões importantes. Fazer o quê? E ainda são 8h da manhã. Checo se saio do carro levando comigo tudo que estou carregando, inclusive os pensamentos. Saio e olho no entorno para ver se é seguro prosseguir. O que vou fazer com essa minha tela toda em branco hoje? Repetir a pintura de ontem e de anteontem? Ao menos uma pincelada diferente vai ter. Espero. Desejo. Sigo.


Crédito da Imagem: Foto por @danielaecheverri

Os textos representam a visão dos respectivos autores e não expressam a opinião do Sabático Literário.”

11 comentários em “DIARIAMENTE

    1. Nossa quem não se sente representada em algum momento da vida? É muita loucura né! A que ponto chegamos? Como se libertar dessa aceleração da vida diária fazendo o que é preciso e entregando pra Deus (ou pro dia seguinte) o que não deu. E busco refletindo: vale a pena? Tem como ser diferente? Parabéns!

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      1. Essa reflexão quanto até que ponto vale toda essa correria é uma constante para mim. Retratei poucos minutos de uma simples saída diária de casa. Mas acho que ilustra um pouco do quão frenético é o ritmo de tantas mulheres. Obrigada pelo incentivo!

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  1. Tenho uma certa inveja… de quem consegue expressar seus sentimentos literal e literáriamente…. apesar da corrida do tempo. Eu gostaria de fazê-lo… mas sempre empurro com a barriga o desejo da arte e da poética. Parabéns a minha amiga Lidi… Mãe, trabalhadora, empreendedora, líder, manager… e escritora!!! Como consegue?

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