A SEMENTE DO ACOLHIMENTO

Por: LIdianne Monteiro

EM TODAS AS SITUAÇÕES, A DUREZA DO ABANDONO PODE TRAZER A LIÇÃO REDENTORA DA ACOLHIDA, A DEPENDER DE COMO REAGIMOS A ELE.

Temos um gatinho em casa. Adotado há quase três anos. Fruto do desejo antigo da minha menina mais nova, ele chegou em um momento em que nossa família se reestruturava e se acomodava a mudanças difíceis. Ele trouxe um ar de frescor e vivacidade à casa e preencheu nossos dias com ternura e traquinagens. Antes dele chegar, já tínhamos decidido que adotaríamos um bichinho abandonado que precisasse de uma família. Divulgamos com alguns amigos esse nosso desejo e o universo o fez chegar aqui por meio de uma rede de amigos onde um fala para o outro que fala para mais alguém e, quando a gente vê, está se comunicando com alguém que nem conhece e que estava cuidando do nosso bichinho enquanto a gente ainda nem sabia que ele existia.

Charlie foi abandonado por sua mãe, uma gata que vivia nas ruas. A primeira pessoa que o resgatou, moradora das proximidades dessa rua em que a gatinha transitava, viu a ninhada e observou, por diversas vezes, que a gata mãe o rejeitava, deixando-o para trás ou até mesmo machucando-o. A humana (com todo os sentidos da palavra “humana”) que teve compaixão por ele já cuidava de outros animais e o resgatou para proteger sua vida frágil enquanto conseguia um lar definitivo para ele. E assim ele chegou para nós.

Por que queríamos um gatinho abandonado? Por que não fomos a um pet shop comprar um gatinho de raça, perfumado e lindo? Também amamos os bichinhos de pet shop. Mas a probabilidade desses bichinhos conseguirem um bom lar é bem maior do que a de um gatinho abandonado, sem raça definida, sem histórico de saúde conhecido, muitas vezes magrinho e sujo, talvez doente. Além disso, há indícios recorrentes de exploração animal nesse tipo de comercialização, o que, obviamente, não posso generalizar como regra.

Nesse contexto, salta-me aos olhos de forma muito contundente a questão do abandono em geral, do estar sozinho, do ser preterido, rejeitado, de não ter ninguém para lhe acolher e de estar entregue à própria sorte. Isso acontece com todos, humanos e animais, em determinados graus e em muitas situações ao longo da vida. É o emprego do qual se foi dispensado; é a dificuldade em alimentar a família quando não se tem recurso e falta ajuda de terceiros ou do Estado; é a falta de assistência à saúde e o abandono em um corredor de hospital; é o idoso abandonado ou explorado pelos familiares; é a criança cujos pais não dão a devida proteção; é a mãe chefe de família com sua prole e sem a assistência dos pais de seus filhos; é o morador de rua; é o estudante esforçado e sonhador que não consegue uma oportunidade de ingressar na universidade porque o Estado não provê vagas suficientes; é a pessoa que sofre discriminação pela cor da pele, origem ou orientação sexual; é o bichinho abandonado também, ou porque algum “humano” o descartou ou porque cresceu na rua sem contar com a eficácia de uma política sanitária que abordasse de forma responsável a questão animal, que também é uma premissa de saúde pública.

Seguimos todos desdobrando-nos para superar esses abandonos porque em todos nós há, latente, o instinto pela sobrevivência. Não importa qual o abandono que estejamos buscando superar, seja aquele protagonizado por alguém próximo do qual se esperava compromisso ou empatia ou, ainda, o abandono do próprio Estado e das instituições. Em todos podemos atuar em alguma escala e, de preferência, de mãos dadas. A ilustração trazida pelo exemplo concreto do bichinho abandonado é um caso dentre tantos de várias naturezas e gravidades distintas.

Em todas as situações, a dureza do abandono pode trazer a lição redentora da acolhida, a depender de como reagimos a ele. Na minha pequena e limitada esfera doméstica, a lição de acolher um bichinho e de fazer dele um membro da família amado e digno de cuidado e carinho desperta o compromisso com outro ser, o exercício da nossa capacidade de ter empatia e a iniciativa de fazer algo com nossas próprias mãos, ainda que demande energia, esforço e dedicação. E isto pode e deve ser extrapolado para outras causas também. A escolha pela acolhida beneficia tanto ou mais a quem acolhe.

Minhas filhas vivenciaram a lição da acolhida com a decisão pela adoção do Charlie. As lições construídas sobre a base do bem podem permear tantas outras decisões e prosseguir em outras causas, ainda que nem sempre consigamos ou possamos atuar de forma eficaz e no nível em que desejamos. Mas a semente da boa vontade e do acolhimento foi plantada e é regada todos os dias. Ainda que seja com um regador de conta-gotas, a terra estará sempre molhada e essa plantinha pode prosseguir e florescer.

 Agora, em meio à pandemia, vimos nossa família receber uma cachorrinha recém-nascida abandonada em uma caixa de papelão com outros filhotes. É tão pequena que ainda nem abriu os olhos. Não sabemos se ficará tão grande que não caberá no apartamento, nem podemos predizer nada de sua futura condição de saúde. Mas aceitamos o desafio com amor. Fomos ao encontro dela também sinalizados por uma rede de proteção da qual não conhecíamos ninguém presencialmente. E estamos aqui, as três, alimentando-a com uma seringa a cada duas horas. A acolhida demanda esforço e ações concretas sempre. Envolve também resistências, medos, críticas e dificuldades que, apesar se fazerem presentes, nem de longe fazem frente à terra viva e fecunda lançada à semente do acolhimento.


Crédito da Imagem: Foto por Snapwire em Pexels.com

Os textos representam a visão dos respectivos autores e não expressam a opinião do Sabático Literário. ”

11 comentários em “A SEMENTE DO ACOLHIMENTO

    1. Fico feliz de ter tocado seu coração com a nossa história, que também é a história de tantos: os que abandonam, os abandonados, os que acolhem… Um grande abraço!

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  1. O amor aos animais é algo divino.O ser em abandono,as nuances de ser só em um mundo tão equivocado.Texto interessante sobre essa vertente que está não apenas nos animais,mas também em muitos lugares(resta -nos a sensibilidade de enxergar)Cultivemos o amor e a empatia para com todos.So assim poderemos dizer que estamos em evolução.

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  2. Simplesmente perfeito, como costumo dizer , esses anjos entram em nossas vidas e transformam nosso mundo. Quem dera todos tivessem a coragem de resgatar ,acolher e amar. É tão profundo esse amor que chego a dizer que depois do amor de mãe , essa acolhida nos faz tocar em Deus verdadeiramente.

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